[041] Oscaritos 2024 - O Retorno
Todo ano prometo comentar os filmes concorrendo ao Oscar. Este ano não faço promessas!
🙋🏻♂️ SALVE, SIMPATIA!
Um tempo atrás, não sei se você está ciente, vossa senhoria assinou esta vagabunda, incerta e mal-escrita newsletter. Lembra? Lembra quando você tomou essa péssima decisão na sua vida? Você não lembra, né? Como recordar só esta, dentre tantas… haja memória pra isso tudo. Deve ser muito confortável andar por aí fazendo merda e esquecer na próxima esquina. Eu te invejo, criatura irresponsável, desatenta, alienada das consequências nefastas dos teus atos. Te invejo, verdadeiramente.
Mas não estamos aqui pra falar dos teus critérios deficientes e das suas ações questionáveis. O que acontece é: você assinou esta merda. E não recebeu nenhuma edição desde outubro de 2023 – quando teve que se contentar inclusive com um texto recauchutado –, porém acabou seu sossego. Estou eu aqui, falando com você. Só nós dois. Uma conversa entre confrades. Um petit comité. E sobre o que vamos conversar hoje?, você, qual ChatGPT, me pergunta.
E eu te respondo:
Vamos falar sobre os filmes do Oscar!
🖐🏻 CALMA AÍ, PORRA!
Volta aqui! Calma! EU SEI! OK? EU SEI! Nos últimos dois anos eu falei “ah, verei os filmes do Oscar, à medida que for assistindo vou comentar a respeito aqui, para chegarmos à premiação ciente das parada tudo” e tal. EU SEI. E aí fiz o quê?
Sumi.
Comentei foi nada.
(Vi porra nenhuma também.)
Mancada minha, eu sei, mas esse ano é diferente. EU TÔ DIZENDO QUE É DIFERENTE! É diferente, acredite em mim. E por que é diferente, Pedrúnculo?, tu me perguntas, incréu e pistolito. E eu vos respondo-vos-te:
Porque este ano eu JÁ VI os filme tudo!
Salvo um que NemVy e NemVerey, falo disso mais à frente.
Então prepare-se porque essa edição será rombuda.
Pujante.
Volumosa.
Parruda.
Cabulosa.
Vamos? VAMOS, SIM! Senta a sua bunda aí, tira meia hora (ou um pouco mais) do seu dia e VAMOS. SEU PORRA! Quatro meses sem escrever nessa merda, não me vem com “Ai, ui, mas este volume, eu não consigo receber nas minhas entranhas tão abissal estrutura”, porque consegue, sim. Consegue SIM! Sabemos que consegue.
Vai pegar um café e/ou uma água, pega um chocolatinho também (traz um pra mim, deixa de ser babaca) e bora. Serão DOZE resenhas (mais ou menos) curtas. Se a edição ficar muito longa, ela vai ficar truncada na sua caixa de mensagens. Se quiser ler na íntegra talvez você tenha que abrir no próprio Substack. Ok?
Ok então.
📌 PRIMEIRAS COISAS PRIMEIRO
Vamos a alguns esclarecimentos sobre o que se segue:
O nome do filme, seguido da minha avaliação, de 1 a 5 estrelas (⭐). Como não tenho o ícone da meia estrela aqui, usarei este (✨) para sinalizar meio ponto.
As indicações que o filme recebeu. Suprimi o adjetivo “melhor” porque, oras, todos os prêmios são para “melhor” alguma coisa. É o Oscar, não o Framboesa de Ouro, afinal.
Os filmes irão na exata ordem na qual foram assistidos, e não em ordem de preferência, alfabética, data de lançamento, estatuetas às quais concorre, numerologia com base no nome do produtor executivo ou qualquer merda dessas.
Tentarei elaborar as observações que já fiz em outras redes (especialmente letterboxd e Instagram). Ia incluir ao pé de cada avaliação um TL;DR, mas considerei inútil: quer a versão resumida, leia só os títulos e as estrelas e pronto.
Farei o possível para não dar spoilers.
Ao fim virá a informação de onde você pode encontrar o filme.
🎞 OPPENHEIMER ⭐⭐⭐⭐
Indicações: Ator, Ator Coadjuvante, Atriz Coadjuvante, Fotografia, Figurino, Direção, Edição, Maquiagem, Trilha Sonora Original, Filme, Design de Produção, Som, Roteiro Adaptado (13 indicações, se você estiver com preguiça de contar).
Este filme, sobre o sujeito responsável pelo projeto que desenvolveu as duas bombas atômicas lançadas pelos Estados Unidos sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki, no Japão, não foi indicado a treze estatuetas à toa: tecnicamente é um trabalho admirável. Christopher Nolan e sua equipe entregaram um filme que, tecnicamente, torno a dizer, beira a perfeição, de fato. Mas tem seus problemas. O primeiro:
É chato pra caralho.
“Eita criteriozão objetivo da porra, hein, Nunesco?”, você diz, com seu sarcasmo meia-boca. Porém você tem razão. Vou elaborar.
É óbvio que um filme não precisa ter explosões e tiros e lutinha pra ser grandioso (a menos que você tenha a mentalidade de um moleque de 13 anos com severo atraso cognitivo). Muito do que acontece na nossa vida se passa nos diálogos, não na ação (se você considera que um diálogo não é uma ação). Com o cinema não deveria ser diferente. Porém existe, quando pensamos em roteiro, uma certa razoabilidade em esperar que os diálogos movam a história para a frente. E muitas cenas em Oppenheimer não causam essa sensação.
Muitas vezes tive a impressão inclusive de que, se o filme estava andando, era de lado. Tangenciando a questão principal. Tentando amenizar o inamenizável. Comentei com um amigo hoje: se era para isso ser uma espécie de mea culpa pelas bombas atômicas, realizou um trabalho incompetente nesse sentido. E aí temos o segundo problema: o que deveria soar como o reconhecimento de uma falha me pareceu transmitir, na verdade, um maldisfarçado orgulho.
Enfim. Terminei a história e me ocorreu que o filme não tinha… alma. Outras produções do Nolan consideradas fracas por conhecidos, como Dunkirk e Tenet, me soaram mais honestas do que esta suposta diatribe que mais se assemelha à glorificação de um crime de guerra.
📺 ONDE ASSISTIR? Para aluguel na AppleTV+ e na Amazon Prime Video (e na Locadora Sueca™).
🎞 BARBIE ⭐⭐✨
Indicações: Ator Coadjuvante, Atriz Coadjuvante, Figurino, Música (2 indicações só aqui), Filme, Design de Produção, Roteiro Adaptado (8 indicações)
Bora começar com o seguinte: é uma injustiça sem tamanho que Ryan Gosling tenha sido indicado por seu papel e Margot Robbie não.
Mas injustiça ainda maior é que qualquer indicação a melhor ator ou atriz por esse negócio.
É um filme bobo. Não é “veja, ele trabalha questões importantes mas com leveza”, porque isso não é ser bobo, é ser simples. Não é “ele precisa apresentar temas complexos pra uma audiência com pouca bagagem”, porque isso não é ser bobo, é ser palatável.
Barbie é um filme bobo. Não tem estofo pra ser sátira e não tem estofo pra ser crítica. Sua abordagem das questões sérias das quais se propõe a tratar (feminismo, em especial) é covarde, escapista e simplória. É o puro suco do feminismo de twitter: a culpa de qualquer coisa é “do patriarcado“ e está encerrada a questão. Vamos galera, mulheres. Etc.
É engraçadinho. Funciona como comédia. E só.
📺 ONDE ASSISTIR? HBO Max (e Locadora Sueca™).
🎞 ANATOMY OF A FALL ⭐⭐⭐⭐
Indicações: Atriz, Direção, Edição, Filme, Roteiro Original (5 indicações).
Uma casa no meio do nada na França. Nos Alpes ou coisa parecida. Vivem lá um casal e um filho pré-adolescente cego que tem um cão-guia. O filho sai pra dar uma volta com o cachorro. Na volta, encontra o pai morto no chão, do lado de fora da casa. Após a perícia, a mãe é indiciada por assassinato. Segue-se o julgamento.
Exponho o filme dessa forma alongada porque estou enrolando para escrever sobre ele. Porque é difícil. Pela sinopse, parece um filme sobre julgamento, um thriller de mistério, mas passa longe disso. Me parece muito mais um filme sobre as decisões que nós tomamos. E como nossas relações interpessoais, com suas vicissitudes particulares, as pequenas crueldades que cometemos e/ou sofremos regularmente, se tornam monstruosas quando observadas sob uma lente de aumento.
Como explicar que sim, havia uma certa animosidade, mas não a esse ponto? É claro que nós nos desentendíamos, mas isso não significa que… Houve esse problema da infidelidade, sim, mas daí a dizer que… Sim, tivemos uma discussão que descambou para a agressão, mas nem por isso…
É sobre a rotina e todas as pequenas decisões que tomamos e como todas essas coisas míseras, irrelevantes, corriqueiras, podem montar um espantalho e tanto que ficará ali, pairando sobre nossa cabeça, como um tributo à nossa perversidade.
De perto ninguém é normal é um clichê daqueles. A pergunta aqui não é essa. A pergunta é: de perto alguém é bom?
A liberdade, as escolhas que nós fazemos e o quanto somos responsáveis pelas consequências das nossas decisões são pontos importantes aqui também. E o melhor é que, por não ser um filme estadunidense, nada é diluído, simplificado ou definitivo. Tudo tem um caráter de dubiedade, de incerteza. Porque a vida é assim.
📺 ONDE ASSISTIR? Talvez ainda esteja nos cinemas (e está na Locadora Sueca™).
🎞 KILLERS OF THE FLOWER MOON ⭐⭐⭐⭐⭐
Indicações: Ator Coadjuvante, Atriz, Fotografia, Figurino, Direção, Edição, Trilha Sonora, Canção Original, Filme, Design de Produção (10 indicações).
Scorsese, com seu foda-se ligado no talo para a atual geração acostumada a vídeos de no máximo 30 segundos, dirigiu esse monolito de três horas e meia que conta a história real dos assassinatos cometidos contra membros da tribo Osage no começo do séc. XX, após eles descobrirem petróleo em suas terras.
E se você ainda não viu porque pensa “Puta merda, três horas e meia de filme”, saiba: meu pensamento era o mesmo. E, aos dez minutos do filme, eu já não queria que terminasse. Porque é isso que um mestre da arte de contar histórias faz, ele te pega pelo colarinho. E ele não tarda a te dizer que algo ali está errado. Você para pra ouvir, como a boa fofoqueira que é, e o homem não te decepciona.
Há um senso de humor muito comum às produções dele (talvez mais forte em Lobo de Wall Street do que em qualquer outro de seus filmes) que não se encontra aqui: a história é tratada com a devida gravidade. Os indígenas não são burros, mas são ingênuos. Os brancos que os cercam percebem isso e agem com absoluta vileza. Maldade e método levados a sério, expostos como os horrores que são.
Dizer que DiCaprio e De Niro estão formidáveis em seus papeis seria perda de tempo. Mas quem destrói mesmo é Lily Gladstone. A mulher fala com os olhos. Até quando você não entende o idioma dela, entende o que ela quer dizer.
E uma coisa que me pergunto é se a reação do Scorsese, ao receber a informação de que mais um filme dele foi indicado ao Oscar, é:
– Claro que foi.
📺 ONDE ASSISTIR? AppleTV+ (e Locadora Sueca™).
🎞 POOR THINGS ⭐⭐⭐⭐⭐🖤
Indicações: Ator Coadjuvante, Atriz, Fotografia, Figurino, Direção, Edição, Maquiagem, Trilha Sonora, Filme, Design de Produção, Roteiro Adaptado (11 indicações).
De tempos em tempos alguém produz uma obra que nos oferece uma magnífica oportunidade: a de separar quem tem o mínimo de capacidade cognitiva de quem é limitado quando o assunto é identificar, avaliar, classificar e absorver elementos de linguagem.
Simplificando: nos permite saber quem é burro.
Este filme é um desses.
Em uma Londres vitoriana, um famoso cirurgião tem, sob sua tutela, uma jovem que parece sofrer de problemas mentais: tem pouquíssima coordenação motora, dificuldade para articular palavras, para compreender o mundo a sua volta, é socialmente inábil, a lista segue por aí. Um dos personagens, ao conhecê-la, a classifica como “uma linda retardada”.
Com o tempo descobrimos que a mulher é resultado de um experimento do tal cirurgião (que, por sua vez, é uma mistura de Dr. Frankenstein e Monstro de Frankenstein): ao encontrá-la grávida e morta após se jogar de uma ponte, ele retira o cérebro do bebê e coloca na cabeça da mãe. Então o que temos é um corpo feminino adulto com o cérebro de uma recém-nascida.
O desenrolar do filme acompanha o desenvolvimento dessa mulher, Bella Baxter, e suas descobertas ao interagir com a realidade a seu redor: as pessoas que ela encontra, os diálogos que trava, as reações que desperta no mundo e que o mundo desperta nela. A criação que recebe no período em que permanece na casa do cirurgião é absolutamente liberal: ela não é censurada, coibida ou constrangida. Não é ensinada sobre culpa, vergonha ou a reprimir desejos. Mesmo quando resolve fugir de casa ela anuncia a fuga e é respeitada após uma breve argumentação com seu tutor.
O filme explora com humor genial as reações das pessoas a uma mulher que valoriza a própria liberdade. As consequências nem sempre são as que esperaríamos, mas são sempre conduzidas com inteligência. É óbvio que aprender sobre o próprio corpo, sobre sexualidade e sobre como tudo isso pode ser divertido é parte do processo e é óbvio que essa parte, especificamente, leva os moralistas que veem o filme à loucura. Ao sair do cinema tive que esperar a namorada ir ao banheiro e me diverti ouvindo uma menina de vinte e poucos anos reclamando escandalizada sobre como a história “romantiza” “abuso” e outras idiotices semelhantes que essa juventude adora dizer.
Porém o filme não romantiza nada: é apenas uma exploração de ações e consequências, mas sem angústia, culpa ou arrependimentos. Experimentação, avaliação, conclusão e, em caso de insatisfação, mudança de rota: é a abordagem da protagonista e deveria ser a de todo mundo. Não se trata de ser irresponsável ou escravo dos prazeres, mas de ter agência sobre a própria vida e saber lidar com os resultados, positivos e negativos, das nossas ações. Não se deixar prender ou escravizar pelas expectativas, exigências e chantagens (com ênfase nas emocionais) alheias.
Porém isso é exigir demais de uma turma que acredita em “responsabilidade afetiva”, claro.
Não estou mencionando aqui, porque só isso já daria um baita texto, como as diferentes fases de crescimento da personagem se refletem em tudo o que há na tela: figurino e paleta de cores, em particular. Também não vou me alongar sobre como o jogo do diretor com a câmera é uma linguagem por si só e ficar elucubrando sobre o que ele tentou ou quis dizer, mas o fato é que tudo isso está lá de forma magistral. É um filme para assistir diversas vezes. E que talvez te diga coisas diferentes a cada nova visita!
Foi direto para minha lista de favoritos da vida. Mas acredito que não deve levar muita coisa: é muito crítico, ácido, desapegado para ser benquisto. É muito do que o Lars Von Trier tenta ser e não é. Se levar algo durante a cerimônia será uma grata surpresa!
📺 ONDE ASSISTIR? Cinema (recomendo MUITÍSSIMO!).
(e Locadora Sueca™)
🎞 THE HOLDOVERS ⭐⭐⭐
Indicações: Ator, Atriz Coadjuvante, Edição, Filme, Roteiro Original (5 indicações)
The Holdovers é um filme que se passa no começo da década de 70 sobre um grupo de pessoas (um aluno, um professor insuportável e uma copeira) que, durante os feriados de fim de ano (Natal e Réveillon), por uma razão ou por outra, não podem se ausentar do colégio interno no qual residem e trabalham/estudam.
A ideia é ótima e tem um potencial imenso, porém a execução é bem mediocre. Começa pelo fato de existirem elementos que são inseridos na história sem qualquer razão ou justificativa, o que, para alguém que aprecia a ideia da Arma de Tchekhov1, como eu, é uma atrocidade.
Cito um exemplo: a história, como eu disse, se passa na década de 70. Pois bem: por quê? Absolutamente nada relevante, para a narrativa, se extrai disso. Durante o fim da década de 60 e o começo da década de 70 não faltam acontecimentos sociais para serem usados como mote, provocador, catalisador das ações dos personagens. Se aquelas são pessoas inseridas nesse contexto sociopolítico, por que nada desse dito contexto transparece por meio dos atos ou falas dessas pessoas?
Este é um elemento, e se algo dessa magnitude é ignorado de forma tão contumaz, imagine só o grau de irrelevância que têm os detalhes (a garrafa de uísque, o programa de TV…). Além disso as motivações dos personagens são obscuras, suas ações são, muitas vezes, inconsistentes. E nunca de um modo “puxa, eu não esperava por isso, que surpresa”, mas sim do modo “…mas isso não faz nenhum sentido com tudo o que esse cara disse ou fez até então, alguém nessa história é esquizofrênico: ele, eu ou o roteirista”.
O filme acaba sendo uma série de golpes baixos na tentativa de arrancar umas lágrimas da audiência. Só vale o teu tempo mesmo porque o Paul Giamatti está ótimo no papel do professor meio babaca, meio rabugento (com o qual achei que iria me identificar mais, mas percebi que temos tipos diferentes de babaquice e rabugice).
📺 ONDE ASSISTIR? Acho que tá no cinema, sei lá. Eu aluguei na Locadora Sueca™.
🎞 AMERICAN FICTION ⭐⭐⭐⭐
Indicações: Ator, Ator Coadjuvante, Trilha Sonora, Filme, Roteiro Adaptado (5 indicações)
Thelonius “Monk” Ellison é um escritor e professor de literatura frustrado com a fetichização dos problemas sociais (em particular no que se refere ao racismo) e um dia resolve, só de sacanagem, escrever um livro cuja história explore esse tipo de coisa.
Ele faz isso como sátira, mas aparentemente só ele e o agente dele entendem isso. Todo o resto do mundo leva o livro muito a sério e o considera “fundamental”.
À parte os ótimos diálogos e a rabugice do personagem principal (com ESSA, sim, eu me identifiquei muito), acho que o que mais me divertiu nessa história toda foi ver tanta, tanta gente que eu conheço e já conheci e que, em uma sanha “antirracista”, não faz nada além de naturalizar o racismo. Gente cujas motivações podem até ser boas (não acredito muito nisso), mas os métodos são os piores possíveis. Muito do que eu sempre falei sobre a desumanização do outro em busca de um quentinho no coração que te dê a certeza de que sim, você é uma pessoa boa, e sim, você é uma pessoa moral, e sim, você é “aliado” dos oprimidos, etc., está neste filme.
É inegável que Monk tem uma vida privilegiada: a família do cara tem duas casas (um casarão na cidade e uma casa de campo na praia!), o pai foi um médico famoso, a irmã seguiu esses passos, ele pôde se dedicar aos estudos e escreve uma literatura que não é considerada literatura negra (ele mesmo não a considera assim)… ele não se vê como oprimido, não se sente oprimido e nem deveria: essa é uma condição transitória, e não permanente, como eu disse quando fiz a resenha sobre Sula, da Toni Morrison. Tentar arrastar a pessoa o tempo inteiro para essa posição de agente político, de “existência = resistência”, é obviamente uma violência.
O filme é uma comédia sobre isso. Além de uma fantástica discussão sobre literatura, que culmina em uma conversa tensa, porém amigável (porém tensa!), entre Monk e a “autora negra da vez” (que escreveu um livro tão disparatado e ridículo que a cena na qual ela lê um trecho para um público de pessoas brancas que aplaude efusivamente deveria causar vergonha em muita gente, caso essas pessoas tivessem a clareza de visão de se perceber nesse lugar).
Vou recomendar esse filme toda vez que alguém vier me perguntar se eu li Torto Arado.
📺 ONDE ASSISTIR? Eu ia dizer “Locadora Sueca”, mas na verdade ele entrou no catálogo da Amazon Prime Video ontem!
(Porém também pode ser conferido na Locadora Sueca™)
🎞 NYAD ⭐⭐⭐✨
Indicações: Atriz, Atriz Coadjuvante (2 indicações)
Você gosta de apresentação em powerpoint? De palestra motivacional? De discurso de coach? Se você respondeu SIM para essas perguntas, ah, camarada, eu tenho o filme perfeito para você!
Nyad é sobre a nadadora Diana Nyad, (supostamente) a primeira (e única) pessoa a nadar de Cuba até a Flórida. Há um agravante: ela fez isso após os 60 anos. Há outro agravante: ela não utilizou as típicas gaiolas que as pessoas que tentam essa demência esse admirável feito sobre-humano geralmente usam.
Então a história é interessante? Porra, é claro que a história é interessante. Você me diz que uma pessoa, depois dos 60 anos, quer se sujeitar a uma atrocidade dessas, nadar 110km em mar aberto, em águas infestadas por tubarões e águas-vivas, sem gaiola de proteção, correndo o risco de ser arrastada pela corrente do golfo, nadando sem parar por quase 60 horas, e é isso mesmo, 60 horas sem sequer TOCAR no barco, você me diz que um filme tem tudo isso e como é que essa história não seria interessante?
Então o problema não está na história, mas na estrutura narrativa. Como eu disse, a coisa toda tem ares de TedTalk, de palestra motivacional. Parece um filme que um gerente comercial coloca a equipe de vendas pra assistir como "tarefa” durante o fim de semana. Descamba para o “EU POSSO! EU FAÇO!”, em vez de se debruçar no que seria lógico e razoável: “Pra quê, bicho?”.
Não que eu ainda me faça essa pergunta, claro. Eu estou familiarizado com a demência humana, não me subestimem. Mas o roteirista? Porra, ele tinha que fazer essa pergunta. E ignorar as primeiras respostas. Porque algumas até estão lá: a mulher diz que o nome dela é “Náiade”, então ela nasceu pra nadar.
Conversa fiada.
Aí ficamos sabendo, muito por alto, que ela sofreu abuso na adolescência.
Isso também não justifica nada.
Acaba sendo uma narrativa muito da chapa-branca, que não bota o dedo na ferida, não explora o que diabos leva uma pessoa a esse rompante de autodestruição. É só uma produção (com fotografia bonita, isso é fato, e boas atuações, verdade seja dita) sobre o poder da amizade.
E, óbvio, nos presenteia com a indefectível frase: “Nunca desistam dos seus sonhos”.
Eu não cruzei 110km a nado e posso dizer, de consciência tranquila e com o coração muito em paz: desistam, sim. Às vezes teu sonho é idiota. Saiba reavaliar teus sonhos e desista deles se forem estúpidos.
📺 ONDE ASSISTIR? Netflix. (e… porra, você já sabe.)
🎞 RUSTIN ⭐⭐⭐⭐
Indicações: Ator (1 indicação)
Tá ligado o famoso discurso “Eu tenho um sonho…”, do Martin Luther King Jr.?
Foi feito na escadaria do Capitólio, durante um evento no qual mais de cem mil pessoas foram a Washington protestar pacificamente pedindo direitos civis aos negros nos Estados Unidos.
Tu sabe quem organizou o evento?
Então.
Esse filme é sobre esse cara. Sobre o cara que organizou um evento no qual um dos discursos mais famosos do Séc. XX foi proferido. E é um cara sobre quem eu, até então, não sabia nada. Nunca tinha ouvido falar no sujeito. Bayard Rustin, o nome dele. Um ativista dos direitos civis nos Estragos Unidos. Negro. E gay.
O alvo de um supercombo de preconceitos.
Tratando do período que envolve a concepção e organização do movimento (e todo o inferno pelo qual passam os defensores dos direitos civis na maravilhosa terra da liberdade), o filme nos apresenta um Bayard Rustin formidável (Colman Domingo inclusive merece a estatueta muito mais do que Cillian Murphy, que é quem irá levá-la para casa) cercado por um elenco de atores e atrizes negros muito foda (inclusive o Chris Rock!).
Óbvio que, como é comum em biopics, a gente tem que se perguntar o tempo todo o quanto aquilo na tela é a verdade e o quanto é a interpretação, a adaptação da verdade. Porém se encontramos um personagem com essa importância histórica e não sabemos dele o suficiente para avaliar o quanto do filme é real e o quanto é imaginação do roteirista e do diretor, não podemos culpar a produção do longa.
A falha é nossa mesmo. Deveríamos ser mais atentos.
Lembro de ler um crítico dizer que o filme é muito mais sobre uma agenda do que sobre arte. E talvez seja. Não, eu definitivamente concordo que é. Nem por isso acho que a parte artística ficou relegada a segundo plano, ou que a produção peca em algum aspecto. O roteiro é veloz, mais rápido do que é possível acompanhar no começo, mas logo entramos no ritmo e a história começa a fluir. E então fica claro que isso é uma projeção da personalidade do protagonista: cacofônico, elétrico, hiperativo.
Os momentos de contraponto entre Bayard Rustin e Martin Luther King são um ótimo lembrete de que pessoas com o mesmo objetivo podem discordar em tudo. A conclusão à qual Rustin chega em uma dessas conversas, sobre quem deve ou não ter seus direitos respeitados na sociedade, é um tabefe na cara, daqueles bem-servidos, para todo mundo que acha que esse tipo de luta pode ser segmentada.
Vale o tempo de tela. Vale tua atenção.
📺 ONDE ASSISTIR? Netflix novamente. (E lá também)
🎞 PAST LIVES ⭐⭐⭐⭐
Indicações: Filme, Roteiro Original (2 indicações)
Não gosto muito do termo “fatia de vida”, porque, a bem da verdade, toda história é uma “fatia de vida”. Mesmo se a história abranger toda a vida de um personagem. Sob alguma outra perspectiva, aquilo é só uma fatia. Um pedaço. Não é o todo.
Mas aqui eu vou me dar o direito de usar o termo. Porque se há uma história que define o conceito é esta aqui.
Duas crianças, a menina Na Young e o garoto Hae Sung, são colegas de sala em um colégio na Coréia do Sul. Caminham juntos para casa ao fim das aulas. Um dia a família da menina se muda para o Canadá. Ela e o menino perdem contato.
Passam-se doze anos. Os dois se reencontram, graças ao surgimento do Facebook. Passam a conversar por Skype. Desenvolvem o que só pode ser classificado como um webnamoro. Alguns meses se passam com os dois conversando todos os dias, então resolvem se afastar. Ele está na Coréia, ela nos Estragos Unidos, não existe possibilidade de se encontrarem tão cedo, a incerteza é um inferno, etc. Melhor romper o contato.
Passam-se outros doze anos. Ele vai aos Estragos Unidos. Ela está casada. Mas eles se encontram mesmo assim (ela avisa o marido).
É uma história sobre desencontros. Sobre o que é possível, não o que é real. Sobre o que queremos fazer e o que podemos fazer, de fato, e a inevitável angústia que se precipita quando confrontamos o que desejávamos e o que foi possível materializar.
É engraçado, mas só agora me dei conta de que pelo menos dois filmes dessa safra são sobre decisões, consequências e responsabilidade, em oposição à recente onipresença da ideia de multiverso, sobre a qual falei aqui algum tempo atrás, e que é o contrário disso. O multiverso são todas as rotas, caminhos e escolhas. Todos simultâneos e possíveis. Mas Past Lives não trata do multiverso. Trata da tristeza, ou do alívio, ou da dúvida, ou de tudo isso junto, que sentimos quando temos que contrapor aquilo que é e aquilo que poderia ter sido.
É do que fala o Novecentos, quando pergunta:
Cristo, mas via-lhe as ruas?/
Também apenas as ruas, havia milhares delas, como fazem para escolher uma/
Para escolher uma mulher/
Uma casa, uma terra que seja sua, uma paisagem para olhar, um modo de morrer/
Porém muito da vida envolve isso. Essa constante escolha. E daí ter que lidar com as consequências dessa escolha.
Os personagens de Past Lives lidam, cada um a seu modo, e de formas diferentes dependendo do momento. E, para além do casal Na Young (agora Nora) e Hae Sung, Arthur – marido de Nora e a direta consequência de uma das escolhas dela – também precisa lidar com esse momento. Os diálogos, os jogos de câmera, a linguagem corporal dos atores. Os olhares que fixam e os que fogem. Todos esses elementos estão ali, ponderando sobre as vidas hipotéticas, sendo atropelados pela vida real.
É uma gracinha de filme. Veja!
📺 ONDE ASSISTIR? Nela mesma: a Locadora Sueca™.
🎞 MAESTRO ⭐⭐⭐✨
Indicações: Ator, Atriz, Fotografia, Maquiagem, Filme, Som, Roteiro Original (7 indicações)
O filme trata da vida do músico Leonard Bernstein. De quem eu sei muito pouco e de quem não passei a saber muito mais por causa do filme.
Bradley Cooper e Carey Mulligan estão fantásticos nos papeis: até aí, nada de novo e as indicações não são questionáveis. Porém o que esse filme me conta? O que ele me diz? Qual é a justificativa do filme para ocupar tempo na minha tela?
Não existe. E essa ausência de mote, de ponto central, me incomoda. “Porra, mas o Bernstein foi um gênio da música”. Ok. Mas isso não está no filme. Quer dizer, ele DIZ que é um gênio da música. E aparece regendo uma orquestra, de forma enérgica, três ou quatro vezes. Isso me diz que ele era um gênio? Não diz.
Contar uma vida inteira em um filme de duas, três horas não é uma tarefa fácil: por isso Rustin fez bem em se manter focado na organização da marcha dos cem mil. Bradley Cooper tentou abraçar mais tempo de vida do objeto do filme em Maestro e seria inocência dizer que isso não comprometeu a consistência da história.
Bradley Cooper é um diretor competente. E não é um roteirista ruim. Mas se ele um dia vai produzir uma obra-prima, ainda não foi dessa vez.
📺 ONDE ASSISTIR? Netflix. (E lá.)
🎞 THE ZONE OF INTEREST ⭐⭐⭐⭐✨
Indicações: Direção, Filme Estrangeiro, Filme, Som, Roteiro Adaptado (5 indicações)
Esse filme, bicho.
Puta que pariu esse filme.
Veja: o incômodo é uma das relações possíveis com a arte. Uma obra de arte que gera perturbação em quem a consome – obviamente desde que a perturbação seja parte do objetivo do artista – é uma boa obra de arte. Cumpre seu papel. Atinge seu objetivo. Mérito do artista.
Geralmente essa perturbação é determinada pelo criador, fica a critério dele. Quando, em O Túmulo dos Vagalumes, Isao Takahata mostra a menininha, Setsuko, deitada na caverna, mastigando uma pedrinha, ele está mirando um canhão na cara da audiência: ele sabe que vai fazer estrago e sabe quanto (MUITO! MUITO, PORRA! EU ESCREVI ESSA FRASE SOBRE ELA NA CAVERNA E MEUS OLHOS MAREJARAM! INFERNO!!).
Jonathan Glazer fez algo neste filme que eu nunca vi um diretor fazer: ele deixa o incômodo a critério do espectador.
O quanto você sabe sobre Auschwitz? A história, as crueldades, os horrores que se passaram lá? Pergunto isso porque este filme te incomodará na exata medida dos seus conhecimentos sobre o campo de concentração mais famoso da Alemanha nazista.
A história é simples: uma família alemã (pai, mãe, cinco filhos) vive em uma casa bonita, de dois ou três pavimentos, com bom quintal, amplo jardim, até uma piscininha e uma estufa. Floreiras, vinhedos. Uma vida idílica. Só tem um detalhe:
É a família de Rudolph Höss, oficial da SS encarregado do comando de Auschwitz. Estamos em algum momento em 1943 ou 1944, auge da guerra, a chamada Solução Final está em curso. E a casa faz muro com o campo.
O diretor nunca entra lá. Nós não vemos Auschwitz por dentro. Mas ouvimos. Ouvimos estampidos. Um motor. O som de algo que parece uma fornalha e não descansa nunca. E onde as câmeras ficam? No quintal da casa de Rudolph. E o que nós vemos? As trivialidades da vida desta família alemã.
Vemos a mãe que coloca o bebê para cheirar uma rosa do jardim (ouvimos o estampido de um tiro).
Vemos o filho de oito ou dez anos brincando com seus soldadinhos de chumbo (ouvimos um oficial do campo ordenando o afogamento de um prisioneiro que lutava contra alguém por uma maçã).
Vemos a sogra de Rudolph caminhar com a filha pelo jardim (ouvimos um grito de sofrimento).
A sonoplastia conta a história que a câmera não se propõe a contar. O campo está escondido por um muro, mas os sons são indisfarçáveis. Não é um filme de guerra: é o negativo de um filme de guerra. É o absurdo do cotidiano diante da atrocidade que se desenrola do outro lado do muro2.
Brutal e magnífico. E se não ganhar o Oscar pela sonoplastia, podem encerrar a Academia.
📺 ONDE ASSISTIR? NO CINEMA! Se for alugar na Locadora Sueca™, ou veja com fones de ouvido, ou deixe o volume no talo.
E sobre o filme que Nemvy & Nemverey, conforme mencionado no começo desta edição: trata-se da versão em musical de A COR PÚRPURA. Por princípios eu me recuso a assistir um musical baseado em uma história que fala de segregação racial, violência sexual e violência familiar.
Haja demência.
E este ano está aí. Promessa não feita, porém cumprida.
Se você tiver dúvidas ou quiser comentar suas impressões sobre qualquer um desses filmes (ou sobre todos), pode responder esta mensagem (se é que está conseguindo ler até o final direto no seu e-mail), pode deixar um comentário, pode me mandar uma DM (agora temos isso por aqui também), pode criar a tua newsletter e me responder.
Mas aí é muita vontade de falar comigo também, hein? Tem coisa melhor pra fazer não?
Um beijo e nos vemos na próxima edição (sei lá quando será).
A Arma de Tchekhov, como é conhecida essa máxima, diz que “Se o autor menciona no primeiro capítulo que há um rifle na parede, ele precisa ser disparado até o 3º ato. Do contrário ele não deveria estar em cena.”
Que conste: por horríveis que tenham sido os atos cometidos contra os judeus na segunda guerra, nada justifica a barbárie que eles hoje cometem contra os palestinos. Israel é um estado nazista que não deixa nada a dever ao III Reich. Quem apoia Netanyahu e sua política de extermínio do povo palestino não passa de um bolsonarista terceirizado, uma criatura abjeta.
Se você é uma dessas pessoas, pro caralho com você.
Todo ano a sua promessa dos Oscaritos é uma renovação na minha já desregrada, descansada, descabida, descontinuada e desgastada rotina de assistir longa metragens nas telonas e na tela normal que junta pó na sala de estar. Quase me enquadro na categoria dos fedelhos gen-z fedorentos que não aguentam 2h de tela sem reclamar. Mas acho que isso é reflexo de outra coisa [carece de fontes]