[021] Do baiacu à corrida espacial
O fato de o baiacu ser considerado uma iguaria explica muito a respeito da índole humana.
Nós somos macacos que não aceitam um não como resposta. É isso que nós somos. Tudo para além disso, tudo o que diz a filosofia, a psicologia e as religiões são formas de tentar nos desviar desse fato. Do fato de que nós somos macacos que não aceitam "não" como resposta.
Tudo o que a gente faz se resume a e pode ser explicado pela nossa relação com o baiacu.
Pra quem não sabe, o baiacu é um peixe venenoso. Acho que "peixe venenoso" não é descrição suficiente, permita-me ser enfático: é um peixe VENENOSO PRA CARALHO. É considerado o segundo vertebrado mais venenoso do mundo, perdendo apenas para uma pererequinha amarela muito simpática daqui mesmo, da nossa querida América do Sul, de uma região pequena ao redor do Rio Saija, na Colômbia. Esta aqui:
Até onde me consta, a gente não come essa perereca (rs), mas o Baiacu? Meua migo. Se você jogar "baiacu" no google, ainda na primeira página ele vai te oferecer vídeos ensinando a como preparar baiacu. Preparar no sentido de dar um jeito de limpar o bicho da TETRODOTOXINA, a toxina que tem no corpo dele, que é, de acordo com cientistas, "cerca de cem vezes mais poderosa do que o cianeto".
Cianureto, pra gente se manter nas comparações, é o veneno da mandioca brava, que é chamada de mandioca BRAVA por causa do veneno. As folhas da mandioca brava também são consumidas pelo ser humano, em um prato chamado Maniçoba, que é cozido por
- Presta atenção nisso aqui! -
Uma semana, pra acabar com o veneno.
E as pessoas comem isso. Um prato que precisa ser cozido por sete dias, do contrário pode ser letal. As pessoas comem isso e também comem um peixe que, pra ser preparado como sashimi, requer um treinamento especial. Um peixe do qual você não pode comer mais do que uma certa quantidade. Uma parada que, se não for preparada direito, te mata. Mata. Duzentas pessoas por ano morrem disso no mundo e não é como se elas não tivessem opção. Não é como se a humanidade não tivesse a opção de não comer o baiacu. A gente tem a opção de não comer o baiacu, do mesmo jeito que a gente tem a opção de não comer a perereca amarela (rs) e não come.
A gente tem a opção de não comer e o baiacu tem essa cara aqui:
Se algum outro animal tem uma cara tão NÃO ME COMA quanto o Baiacu, eu aceito sugestões. Mas, até o momento, ele é o campeão no meu ranking. A gente sabe que ele é venenoso, ele tem essa cara de quem é venenoso e não tá de sacanagem e a gente mesmo assim come o baiacu.
Três animais, dentre todos, todos os animais que existem no mundo, no mar e na terra, três animais, presta atenção, três animais comem o baiacu: o tubarão tigre e a serpente marinha, ambos biologicamente preparados para resistir à neurotoxina que ele produz.
E a gente.
Os macacos de sapato.
Nós.
A natureza criou um peixe que é em tudo preparado pra te matar ao menor contato, mas você vai lá, tira o bicho da água, limpa e come. Por razões de foda-se. Porque ele está aqui e você pode. Que merda é essa de existir um bicho que eu não posso consumir? Que história é essa? Quem esse peixe do caralho pensa que é pra produzir um veneno letal? Não, não tem isso. É comida, SIM. Vou comer, SIM. Vai pro meu prato, SIM!
É assim que a humanidade pensa. A gente não pode ver absolutamente nada que esteja fora do nosso alcance ou que pareça ter sido feito pra não ser utilizado, acessado ou consumido. Um paredão de pedra intransponível? Intransponível uma porra. Uma montanha de 8 km de altura, com o topo tão distante do nível do mar que não dá nem pra respirar direito lá em cima? Que leva uma semana pra subir e descer, num passeio que pode te causar embolia pulmonar, embolia cerebral, numa temperatura que pode fazer gangrenar tuas extremidades, sendo que não tem absolutamente nada - ABSOLUTAMENTE NADA, NADA, NADA! - lá em cima? Não interessa. Tá aqui, eu vou subir nessa merda. Não interessa se a seiva de uma árvore é a coisa mais venenosa que existe num raio de sei lá quantos quilômetros: a gente vai extrair essa seiva e usar pra alguma coisa. Não interessa se a pimenta desenvolveu a picância justamente pra não ser consumida: hmmm, boquinha ardida, gostoso demais. Não interessa se o mel é o vômito das abelhas: docinho e gostoso, põe aqui no meu prato.
A humanidade é um absurdo desde a essência e a gente só aumenta o grau de absurdo. Tudo o que a gente faz é absurdo. As coisas mais mundanas do seu dia a dia são de uma bizarrice tão completa que se alguém começar a te explicar você manda a pessoa calar a boca, porque não dá pra lidar com nosso grau de insanidade. Se eu te disser pra sentar em cima de um galão de combustível e acender o bagulho, você vai me mandar à merda, mas é o que você faz praticamente todos os dias ao girar a chave do seu carro. Ó o nome do negócio: IGNIÇÃO. ÍGNEO tem a ver com o fogo, e IGNIÇÃO é o ato de atear fogo em alguma coisa. É o que você faz ao sentar no banco do seu carro e girar a chavinha no buraco (ou, hoje em dia, apenas apertar o botão, dependendo do modelo do veículo): você está gerando uma faísca que vai acender a gasolina que está embaixo de você. Não MUITO embaixo: LOGO embaixo. E aí você acende sessenta litros de gasolina e sai pra passear.
Olha o que você tá fazendo agora. AGORA. Você tá olhando pra uma tela e lendo um texto. Que porra é um texto, sabe? Um conjunto aleatório de caracteres e você atribui a eles um significado e de repente as idiotices que eu penso estão aí, na sua frente. Essa merda poderia estar em cirílico ou kanji - existe mais de um tipo de alfabeto, tal é a aleatoriedade desse negócio, nem nisso a gente consegue entrar em consenso - mas isso não muda a natureza da coisa. Você tá na frente de um computador ou um celular e, por meio de ondas eletromagnéticas (QUE MERDA É ESSA?) um monte de zeros e uns saiu do meu computador ou celular e chegou até você.
Você mora num prédio, que é um monte de casas, uma em cima da outra, empilhadas do chão até a altura que o engenheiro ou a construtora julgou conveniente. Não deve ser o maior prédio do mundo, claro, mas é bom lembrar que isso existe: existe O MAIOR PRÉDIO DO MUNDO, e de tempos em tempos outro macaco olha e pensa "Nah, eu consigo fazer um maior do que esse". E ELE FAZ! Cinquenta metros, duzentos metros, trezentos metros... a gente não cansa. A GENTE NÃO PARA! O prédio mais alto do mundo tem 828 metros e a gente não vai descansar enquanto não chegar a 1km. A GENTE NÃO VAI DESCANSAR NEM DEPOIS!
Tudo é um foda-se enorme. A gente vive na força do foda-se. A gente olha pra natureza e pensa "Foda-se esse rio, eu quero que a luz da minha casa acenda sem eu precisar de fogo". Aí a gente represa o rio. A gente olha pra um morro e pensa "Foda-se essa merda, eu quero que minha estrada passe por aqui". Aí a gente planifica o morro ou parte o morro no meio. A gente olha pra uma floresta e pensa "Foda-se esse matagal, eu quero essa merda cheia de SOJA ou VACA". E a gente corta todo o mato que existia ali sozinho e planta o nosso próprio mato. A gente não tá nem aí, meu amigo, tem quem tente domesticar tigre. A gente olhou pro céu e pensou "FODA-SE se eu não tenho asas, é pra lá que eu vou" e a gente olhou pra lua e pensou "FODA-SE A DISTÂNCIA DESSA MERDA! Se eu causar uma explosão forte o suficiente, eu chego até lá".
E agora a gente considera como ir até MARTE.
É um foda-se atrás do outro.
É dessa espécie que você faz parte, entendeu?
Pensa nisso quando alguém fizer algo muito absurdo e você pensar "Mas caralho, como é que pode ser verdade uma porra dessas?".
Pensa que a gente come baiacu.
A gente come baiacu e isso explica tudo.
(Não revisei esse texto, foda-se a revisão)