[012] Dos aprisionamentos sociais
(Publiquei este mesmo texto no meu perfil do Facebook, no blog e agora vai aqui também. Se você me segue nesses três lugares, desculpe pela repetição... e haja estômago, hein, coleguinha? Para quem não me segue nesses lugares, aviso logo: o tema é espinhoso e rola uma suave cutucada na ferida.)
O que eu mais gostei nesse livro da Toni Morrison (Sula, edição da Tag, cedida pela Cia das Letras, tradução de Débora Landsberg) é que a autora obviamente aborda questões referentes à existência de duas amigas negras vivendo nos Estados Unidos do início do século XX. O machismo, o racismo e a luta de classe estão lá, e são esferas com as quais elas entram em contato e com as quais precisam aprender a lidar.
Mas são isso: esferas. Não são determinantes sobre quem essas duas personagens são. Não são delimitantes ou classificações de suas personalidades. São o que são: fatores externos dos quais é necessário saber se esquivar ou, quando isso for inevitável, se defender.Uma amiga com quem falei do livro me segredou algo: que não tinha grande interesse sobre histórias de negros que tratam exclusivamente da questão racial, e se perguntou se isso não seria uma forma de racismo. E eu acho que não é. Acho que é, inclusive, o contrário. Explico por quê: histórias que reduzem, à esfera da opressão, indivíduos de grupos oprimidos desumanizam essas pessoas e naturalizam uma situação que deveria ser circunstancial, transitória. No momento em que você diz a uma mulher que não interessa aonde ela vá ou o que ela faça, que ela estará sempre sob o jugo do machismo, você poderia muito bem colocar cartazes do Grande Irmão em todos os cantos com a fatídica afirmação “EU ESTOU TE VENDO”. Se a opressão, a miséria e o sofrimento são condições fundamentais de determinados indivíduos, se são inescapáveis, de que serve a luta? Para que vale a militância? Qual é o fundamento dos levantes sociais?
Veja: isso não é o equivalente a enfiar a cabeça na areia e fingir que nada acontece, ou que está tudo bem. É exatamente o oposto: é reconhecer que seres humanos são maiores do que as amarras que as estruturas sociais tentam lhes imputar. Que não se trata de uma “mulher negra”, mas de uma pessoa. Que não se trata de um “homem gay”, mas de um ser humano. Que não é “uma pessoa trans”. É uma pessoa. E que todas essas pessoas têm, quando você não está lá, com sua sanha de julgar e validar (ou invalidar) os outros, suas existências particulares. Seus gostos. Seus hábitos. Em tudo genéricos e em tudo peculiares. Iguaizinhos aos meus, aos seus, aos de todo mundo que você conhece. É reconhecer o valor dos movimentos sociais dos quais esses indivíduos fazem parte, seu histórico de luta e sua busca por direitos, e, ao mesmo tempo, não circunscrever esses indivíduos a esses papeis sociais (aos quais eles já são insistentemente limitados tantas e tantas vezes…).
O problema da escrita militante, quando não está aliada a alguma inteligência, apenas ao que há de mais panfletário, é esse: a limitação desses atores a esferas que não são permanentes, que não são o “todo” de suas existências. São aspectos, lados, fatores. Como se, para além das opressões, aqueles indivíduos não existissem. Porém existem! E precisamos entender essas pessoas como pessoas, e daí, sim, virá a conexão que nos fará ver como a desumanização pela qual passam é monstruosa. A única maneira de fazermos as classes dominantes enxergarem isso é se a coisa toda for exposta de tal maneira que as classes dominantes possam SE VER nessa situação, sem qualquer caráter satírico, sem recorrer ao absurdo.
O que nos leva a uma outra questão, quando pensamos sobre o tipo de livro e filme a respeito de questões raciais que escapa da esfera da militância e chega às audiências brancas. Se é necessário dinheiro para produzir, distribuir e divulgar essas obras, e se o dinheiro, majoritariamente, está nas mãos da classe dominante, será que essas obras de fato responsabilizam a classe dominante e apresentam a situação dos perseguidos, dos oprimidos e dos enjeitados como sendo resultado de um conjunto de valores sociais seculares, datados, mutáveis?
Ou será que as obras que chegam até a gente, supostamente para nos mostrar as agruras pelas quais passam essas pessoas, não fazem nada além de naturalizar as condições desses indivíduos, e nos oferecer um falso sentimento de empatia, que não deixa de estar aliado ao conforto do pensamento “essa culpa eu não carrego, as coisas são assim porque assim precisam ser mesmo, não tem o que fazer”?
Enfim.
O livro de Toni Morrison não é desse último tipo.
E é por isso que precisa ser lido.