Quando penso na morte, a primeira coisa que me vem à mente é tudo aquilo que ela apaga: a imensurável quantidade de afetos que desaparecem, as memórias que se vão, os momentos registrados exclusivamente por aqueles olhos e processados por aquele cérebro, por aquela consciência, aos quais nunca mais teremos acesso.
As histórias, as lembranças, o modo de ver o mundo, de pensar a vida. As experiências, as alegrias e os traumas. Os medos. As pequenas satisfações. Os micro elementos que compõem essa coisa à qual chamamos personalidade. O eu.
A morte é sempre o apagamento de um universo particular.
Penso também que a morte tem uns trejeitos felinos (e que me acusem de ser prosopopeico, se for o caso). Em particular uma tendência - admito que pode ser uma percepção enviesada da minha parte - de se aproximar quase que exclusivamente daqueles que não mostram interesse nela. Quanto mais você a deseja, mais ela te ignora. Querer morrer, me parece, é a receita da longevidade.
Era um sábado, 25 de julho de 2009. Eu dormia e ouvi tocar o telefone. Acordei mas não acordei, voltei para o sono (algo que faço sem nenhuma dificuldade). Mas não por muito tempo: meu pai veio me chamar. Lembro das exatas palavras dele: "Filhão, se apronta, a gente precisa ir até o hospital."
Ainda bêbado de sono, o corpo fazendo o download da alma, já ia perguntar por quê, mas o cérebro pegou no tranco e entendi antes de articular a questão. Só sentei na cama e falei "Caralho, a Janaína...".
Eram mais ou menos cinco e meia da manhã.
Fez um dia muito bonito naquele sábado.
Meu pai sempre dizia que o maior medo dele era enterrar um filho. Foi a primeira coisa na qual eu pensei. Foi o que falei pra ele. Dei um abraço no meu pai que ele recebeu meio sem jeito. Sei lá, meu pai nunca foi muito dos abraços, acho.
Meu pai era bom em muitas coisas. Extremamente bonito. Carismático. Bom de escrita. Contava ótimas histórias. Óbvio que os causos que um homem consegue acumular na vida são finitos, então ele repetia vários. E mesmo assim eram ótimos de ouvir. Ultimamente, já com a cabeça meio avariada graças à hidrocefalia, a consciência erguendo âncora e vagando ao largo da realidade, eu às vezes perguntava pra ele sobre alguma história e ele não conseguia se lembrar. Mas às vezes lembrava e contava. Um pouco aos pedaços, entrecortada, mas contava.
Eu dizia, quando éramos mais jovens, que ele devia escrever aqueles negócios. Ele postergou e postergou e nunca fez. Ele era bom nisso também: em postergar.
Meu pai gostava de viver, não de existir. De viver.
Gostava de tomar uísque. Conhaque. Cachaça. Cerveja. Falando assim parece que era um bêbado, mas pelo contrário: um bom bebedor exemplar! Bebia na medida exata de suas capacidades. Em alguns momentos fomos companheiros de copo e digo com tranquilidade que não herdei a constituição do velho para gerenciar o álcool.
Ele também gostava de fumar. E gostava de jogar pôquer. Sinuca. Gamão. Adorava um banho de sol, de mar, de rio, de piscina. Meu pai fazia o próprio bronzeador dele, que um dia alguém batizou de Murilol e pegou. As pessoas sempre pediam um frasco do negócio, Murilol era produzido artesanalmente, em pequenos lotes, e sempre muito limitado.
Meu pai não era um ouvinte muito ativo, ele não ligava o rádio em casa, comprava discos ou CDs, mas ele mantinha a rádio do carro na Brasília Super Radio FM (saudades!) e às vezes eu ainda ouço a voz da Lúcia Garofalo dizendo “A diferença é a música!”.
Ao cinema ele era mais atento. Assistia filmes até tarde da noite, acompanhava o Corujão, comentávamos a respeito do que tínhamos visto, ouvia nossas recomendações com atenção, ia ao cinema.
Meu pai gostava de sair, de encontrar amigos, de contar histórias, de conversar, de viajar. Era reconhecido por ser amigável, generoso, engraçado, charmoso. Utilizava a beleza excessiva e o charme sem a menor moderação, portanto era um mulherengo.
Meu pai gostava de fornicar. Era um pouco maquinal nesse sentido, e, em nome disso, não poucas vezes foi bem filho da puta. Mas mesmo assim, mesmo agindo como um piroqueiro ensandecido, era uma porra de um romântico: tinha um envelope cheio de poemas bonitos que encontrava por aí e guardava. Sabia vários de cabeça.
Essa política de passar a roula em meio mundo também era conduzida de forma irresponsável, tanto que o velho aumentou em 6 o número de macacos de sapato neste planeta. Mas nunca fugiu da raia e cuidou dos moleques dele. Não deixou faltar nada que fosse material, buscava a turma pra passear no domingo, ajudava (ainda que um pouco a contragosto) com as lições do colégio…
Meu pai era todas essas coisas, um pouco de tudo isso e muito disso aí tudo. Mas tem uma coisa que meu pai não era: aquele velhinho condenado ao próprio corpo, de olhar perdido e aflito, desamparado e mudo em uma cama. Aquilo não era meu pai.
E digo de coração leve que foi um alívio quando o velho se livrou dessa prisão que a existência dele se tornou no final da vida.
Deixei de conversar com meu velho coisas que nós poderíamos ter conversado. Em vez disso permiti que meu ressentimento fermentasse e crescesse. Acredito que foi um processo recíproco, ele fez o mesmo. Falar com as pessoas é fácil. Conversar é mais difícil. Então nós sempre falamos muito, mas conversamos muito pouco.
Mas, como é comum às coisas fáceis, falar não resolve, não serve pra muita coisa. É importante entrar nos becos escuros, nas vielas sujas, nos guetos esquecidos da sua cabeça e tirar de lá os elementos que se escondem da luz da tua consciência - porque querem ou porque você os relegou a esse lugar - e lidar com eles, e resolvê-los, e ressocializá-los.
Conversar requer esse exercício. Mas isso te coloca numa posição de fragilidade em relação ao outro. Você abre a caixa que mostra a melequinha molenga que existe dentro de você e essa merda é frágil. É um nervo exposto. É um ponto nevrálgico e qualquer peteleco faz você se contrair todo e a dor te atinge como um raio que percorre o teu sistema nervoso de cima a baixo dez vezes em um milésimo de segundo.
Não é gostoso, não.
Mas é importante.
Não é importante pelo outro, é importante pra você. É importante porque só assim você consegue organizar as coisas. Todos os teus sentimentos, os que te fazem bem e os que te fazem mal. As fichas, as pastas, os arquivos. Te permite arrumar boa parte disso, catalogar, classificar. Jogar coisas fora. É fundamental saber jogar coisas fora.
Eu não joguei as coisas fora. Agora meu pai morreu e não consigo escrever sobre meu pai. Porque enfio a mão na caixa de onde poderia tirar o que é importante de se distribuir em um texto desses e minha mão sai manchada de ressentimento. É uma gosma que se liga a tudo, que está em tudo. E eu não quero escrever um texto cheio de ressentimento, isso não faz nem sentido. Não vai mudar nada. Me soa como vilipêndio a cadáver, sinceramente.
Talvez seja essa a maior genialidade do Karl Ove Knausgard na série Minha Luta, aliás: essa administração do ressentimento. Porque ele deixa claro que existe, mas essa coisa não toma o texto. Nem a tristeza. O tom dele, por todos os seis livros, é muito centrado - por vezes excessivamente monocórdico, mas enfim, cada um tem sua voz ao escrever e não cabe julgar se a do outro está certa ou está errada - e eu sempre admirei isso. Quando meu pai estava vivo - vivo vivo, não como ele esteve nos últimos anos - qualquer coisa que eu escrevesse a respeito dele seria provavelmente um urro de raiva.
Absolutamente desnecessário. Tudo isso.
Mas as coisas são o que são e meu pai está morto. A morte caminhou para o passado carregando sua tocha mas infelizmente não encontrei significado em nada do que estava ali dessa vez.
Conheci meus avós paternos muito pouco: o velho Nunes porque morreu quando eu tinha uns 5 anos, a Helena porque, embora só tenha tirado o carro em 1999, morava no RJ e meu pai nunca me levou para visitá-la. Acho que nos encontramos em 3 ou 4 ocasiões, e só.
Além disso, meu pai nunca falou dos aspectos negativos dos dois, salvo uma história que me contou sobre como meu avô o acordou um dia pela manhã, depois que ele terminou o colégio, e com certa grosseria botou meu velho pra rua, para procurar emprego, pois não ia ficar sustentando vagabundo.
Esse tipo de comportamento nunca é isolado. Não acontece só uma vez e nunca mais se manifesta, ou o velho teria demonstrado perplexidade diante do fato. “Sei lá o que deu no teu avô aquele dia”. Então talvez meu avô fosse uma pessoa mais dura do que as memórias que meu pai compartilhava comigo faziam parecer.
Talvez ele tenha sido difícil. Distante. Grosseiro. Bruto. Meu pai talvez tivesse seu quinhão de ressentimento também, mas era melhor em não deixar transparecer. Pelo menos em relação a meu avô.
O que quero dizer com isso é que, dessa forma, por causa dessa seletividade em relação a quem o velho era, a quem os pais dele de fato foram, eu nunca vou entender por que meu pai foi do jeito que foi.
E, como nós não conversamos, como não tivemos a hombridade de colocar nossas melecas molengas pra se acertarem, não vou saber nunca.
Ai, Pedro, que texto bonito. Eu daqui com a minha coleção particular de mortos, te abraço.
Tem nem o que dizer de um texto desses. Resumiu o porquê da morte doer tanto pra muita gente. Não é por quem foi, mas pelo peso do arrependimento pelo que não foi.