[006] Dos Significados
(Achei isso no meu Evernote, uma nota perdida lá com esse trecho. Não sei se já publiquei em algum lugar, acho que não. Acho que era pra alguma história que estava escrevendo e da qual desisti. Tenho até uma ideia de qual era, e acho que sei que personagem diria isso. Mas não é de todo ficção. Porra, acho que não é ficção em absoluto. É um fato e é isso.)
O que me cansa na vida é isso: esse processo contínuo de desconstrução dos significados. Não é tão difícil quanto parece. Pense na última experiência significativa que você teve. A que te mudou, em essência. A que mexeu com alguma coisa que era, pra você, cláusula pétrea, imutável, e que de repente deixou de ser. Quanto tempo faz? Eu me lembro qual foi meu último acontecimento desses, e espero sinceramente que seja o último. Via de regra esses acontecimentos são os primeiros. A primeira vez em que você fuma um cigarro. Em que compra um maço. O primeiro beijo, a primeira noite de sexo. A primeira viagem com alguém que você anda comendo ou quer comer, sabendo que vai acontecer. O misto de expectativa e medo de que algo dê errado. É isso. É esse abismo que você vislumbra enquanto galga sua insegurança em busca do seu desejo que torna aquela circunstância única. É o que a torna inesquecível. Faz com que ela seja importante. Ganha significado. Entendeu? O problema é que o dia a dia acaba com isso. Vamos nos tornando mais e mais imunes ao que há de novo, até que tudo deixa de ser novo. Mesmo nossa transição constante se torna rotina. O paradoxo dos paradoxos: a transitoriedade permanente. Até isso deixa de ser novidade. Não significa mais nada, é o que é, é assim mesmo. Não requer atenção. Os pequenos e os grandes gestos demandam o mesmo esforço, a mesma criatividade: zero. Sai tudo no automático: o bom dia, o palavrão, o eu te amo, o muito prazer. Autenticidade zero, Sartre teria uma síncope. Mas a vida é assim, não dá pra passar a existência se surpreendendo com as coisas. A primeira vez que você voa? Puta merda, que sensação maravilhosa. A centésima? Que inferno de voo que nunca termina. E tudo é assim. Tudo. Até o sexo se torna protocolar, não dá pra ficar mais patético do que isso. E vivemos assim, com o tempo corroendo lentamente a camada de significado que recobre nossa existência. E só uma coisa muda isso:
A morte.
A morte vem e leva embora alguém que deveria significar muito pra você, que significava, mas que você não via mais. Um amigo pra quem você já não tinha tanto tempo. Um irmão que só encontrava nas festas de fim de ano, falavam-se no aniversário de um ou outro, ou nem isso. A sua mulher, que você considerava garantida, irremovível, como uma extensão do seu corpo à qual você não tem que dar atenção, porque ela está ali e sabe o que fazer. A morte vem e leva sua mulher embora. E, quando a vida dela acaba, e qualquer possibilidade de luz no futuro se apaga de vez, e tudo o que resta é um passado encerrado em si, toda a convivência obscurecida pela ausência de significado torna a brilhar. Tudo vem à tona. As últimas conversas, por mais triviais que tenham sido, são cheias de significados, de sutilezas, de subjetividades. O não dito está em tudo, é tudo. Você se lembra da última vez em que se beijaram de verdade e de todos os beijos formais que trocaram. A última noite de sexo. O último abraço sob as cobertas em um dia frio. O último jantar especial. O último jantar normal, com os dois em roupas surradas, assistindo um filme ou série que ambos queriam ver. Aquele comentário que você fez a respeito da forma como ela dirigia, brincando, três semanas atrás, sem nem perceber. O quanto você foi um babaca. Você se lembra de tudo. Tudo se acende na sua memória. Incapaz de olhar para a frente, você se volta para trás e vê as coisas com uma clareza desesperadora. Depois de passar a foice em quem amávamos, a morte caminha em direção ao passado segurando uma tocha. Ela traz uma circunstância absurda e circunstâncias absurdas lançam sobre tudo ao nosso redor esse manto de significados.
E você não consegue dormir. Por dias e dias, todas as suas falhas, todos os seus deslizes, suas desatenções cotidianas, os pequenos maus tratos, as respostas atravessadas, tudo isso te mantém acordado. Você se vê sob outra ótica. Como é que ela não te odiava? E você busca na memória um sinal de que ela te odiava, sim, um pouco que fosse. Isso iria acalmar seu coração, traria alguma tranquilidade para a sua consciência. Mas ela não odiava.
Ela te amava e você era um merda.
Vai fazer o quê com isso agora?