[039] Do procrastinamento
Uma edição escrita com o único propósito de empurrar minhas obrigações para depois.
🧶 Das enrolações…
Tenho uma aventura de RPG pra escrever.
Jogaremos amanhã, meu (excessivamente numeroso) grupo e eu. Eu sou o mestre. O que, dito assim, pode parecer grandsmerda, mas não é. Ser o mestre em um grupo de RPG só significa que você tem muito mais trabalho do que todo mundo. Não recomendo, embora reconheça que é divertido.
Eu não jogava RPG desde o começo dos anos 2000. Durante minha adolescência, joguei muito AD&D, a (já clássica) segunda edição do (ainda mais clássico) sistema de RPG mais conhecido do mundo (depois do espiritismo Kardecista, o primeiro sistema de RPG de que se tem notícia).
No começo da vida adulta, por N questões – as principais sendo:
A dificuldade para achar gente legal disposta a jogar RPG, pois RPGistas de longa data geralmente são uns babacas chatos do caralho e
Meus amigos que jogavam viviam furando nossos compromissos, aqueles merdinhas
– abandonei um dos meus hobbies preferidos.
Agora, depois de velho, decidi retomar após assistir o filme de D&D que saiu esse ano. Que, aliás, se você não viu, recomendo muitíssimo. Já está na locadora sueca. Não interessa se você nunca jogou RPG, não é algo de nicho. Se curtiu Guardiões da Galáxia, o primeirão, vai curtir esse filme.
De todo modo, entrei nesse assunto, que se alongou mais do que o esperado, só porque queria abrir esta edição da newsletter falando que estou escrevendo esta edição da newsletter para procrastinar.
E aqui estamos.
🤯 …que nos levam às constatações absurdas.
Não é maravilhoso como a procrastinação pode ser um processo hierárquico? Em cascata?
Veja: muitas vezes, quando tenho algo sério para fazer, procrastino fazendo as coisas do RPG. O RPG me distrai de uma obrigação – cuja dificuldade pode ser real ou imaginária – que eu quero evitar. E assim passo o jogo na frente, dizendo para mim mesmo “Preciso adiantar isso aqui, depois faço aquilo lá”.
Mas neste momento é no RPG que reside meu dilema, porque não tem um jogador do meu grupo que passaria num teste psicotécnico caso respondesse as perguntas com honestidade, então é impossível prever o que caralhos eles vão inventar.
Veja: quando o jogo se resumia a um bando de pivetes ao redor de uma mesa apenas imaginando situações a coisa era mais fácil, mas agora, com as plataformas online, foi adicionado um elemento gráfico a cada cena: é sempre necessário encontrar ou produzir um mapa. Então eu tenho que pelo menos CONSIDERAR que tipo de demência meus esclerosados de estimação irão tirar da bunda e me adiantar a isso o mínimo possível.
Como disse lá no começo: divertido, porém trabalhoso!
Assim sendo, estou escapando dessa obrigação – desenvolver as bases narrativas da próxima sessão de jogo, amanhã à noite –, que por sua vez me permite escapar de outras obrigações, ao cumprir uma terceira obrigação (autoimposta!): escrever. Ontem meu processo procrastinatório foi bem menos confortável do que sentar aqui e falar merda a esmo: faxinei a cozinha e dei uma organizada na minha zona particular.
Isso nos conduz a uma conclusão interessante: é possível canalizar a procrastinação, torná-la o combustíval da nossa produtividade. Está evitando uma tarefa a todo custo? É simples: arranje outra função, mais difícil, mais urgente, que você deseje levar a cabo menos ainda do que a primeira.
Desta forma a primeira tarefa se tornará interessante. Atraente, até. E assim você cumprirá seus compromissos. A que custo psíquico? Isso não se sabe. Mas deixe pra se preocupar com isso depois.
Assine amanhã ou depois ou semana que vem minha mentoria de coach de procrastinação! O sucesso te aguarda!
Mas não tem pressa. Vai no seu tempo!
🛋 Senta que lá vem a história.
Tá rolando um golpe novo por aí e dia desses chegou em mim. Sendo curioso – porque eu gosto de entender qual é a ideia por trás do golpe – eu resolvi dar trela. Resultado? Tirei vintão dos golpistas e, como não nasci ontem, não perdi nenhum centavo.
Deixa o tio te passar o caminho das pedras. Vem comigo! Vou começar contando o começo da história:
💲 A ABORDAGEM:
Um número desconhecido surgiu no meu WhatsApp em uma tarde de quinta-feira.
A pessoa se identificou como funcionária de um escritório de tecnologia, com uma oportunidade de trabalho remoto no qual eu poderia faturar, diariamente, de R$ 10,00 a R$ 1.400,00.
E é claro que topei. Quem não quer ganhar de DEZ a MIL E QUATROCENTOS reais em apenas UM DIA DE TRABALHO?
Milzinho por dia? Bora!
📃OS TERMOS DO CONTRATO:
A ideia central era: eu iria fazer avaliação de estabelecimentos comerciais indicados pela “secretária” dessa organização. A cada avaliação, receberia dez pilas. Só precisava de uma chave pix e uma conta no telegram.
Sequer precisaria ir aos lugares. Bastava inventar uma avaliação e manda ver! Ser criativo, falar coisas belas, pensar no que me agradaria em um comércio daquela natureza, redigir meus elogios e pau na máquina: lá estaria eu, R$ 10,00 mais perto de alcançar Jeff Bezos.
“Ah, mas isso é eticamente questionável…”
Concordo. Mas me diga uma forma de publicidade que não seja eticamente questionável e eu vou te dizer por que você está errado.
Claro que eu precisava esclarecer alguns pontos obscuros antes de topar.
Minha necessidade por esclarecimentos quase azedou o negócio, mas conseguimos nos entender e fomos adiante.
💵 SERVIÇO REALIZADO, DINHEIRO NO BOLSO!
Em seguida “a Juliana” me passou o primeiro empreendimento. Tratava-se de um hotel ou coisa que o valha em Santos. O nome parecia deixar bem clara a natureza do negócio: apartamento Santos, mas ao mesmo tempo me confundiu: era um apartamento ou vários apartamentos? É um hotel ou um airbnb?
Quanto à localização, zero dúvidas.
Fui lá. Deixei minha avaliação. Procurei escrever algo que parecesse factível, natural, algo que qualquer pessoa leria sobre um comércio desse tipo e pensasse “Ok, esta me parece uma opinião honesta e bem embasada”. Afinal, o texto precisava aparentar legitimidade para não dar à minha empregadora a impressão de que minha tarefa não estava sendo levada a sério.
Entretanto também era necessário deixar, cautelosamente, indicações aos leitores da avaliação de que a história talvez não fosse real. Para isso eu precisaria inserir na avaliação pequenas pistas factualmente incorretas. Após ponderar longamente por dois minutos, escrevi meu review e enviei o print para a secretária.
Três minutos depois, eu não vos cago: R$ 10,00 na minha conta.
🤡 MAS É A VIDA FÁCIL?
Meu filhote, se você já passou dos 25, tem uma lição que já deveria ter aprendido:
Não existe dinheiro fácil.
A menos que você resolva ser estelionatário, claro. Mas mesmo assim terá que se empenhar em lábia e criatividade para convencer os otárSEUS CLIENTES sobre suas honestas intenções.
Entrei no grupo do Telegram e, no dia seguinte, entendi como o golpe funcionava.
Começa que no grupo a conversa já muda de tom: não é mais R$ 10,00 por avaliação. POR DIA você tem um 20 atividades, divididas em blocos de 2. A cada duas cumpridas você recebe um valor. As duas primeiras valem R$ 10,00, as seguintes R$ 16,00, e assim sucessivamente. Em teoria, ao cumprir todas, você fatura os almejados R$ 1.400,00.
Essas missões não são todas de avaliação de comércios e pontos turísticos, contudo.
Na sexta-feira pela manhã eu cumpri mais duas incumbências: deixei uma avaliação em um restaurante em Santa Catarina e em um museu na Bahia. Mais dezinho na conta. Vintão faturados fazendo esforço zero. E aí veio a terceira:
Me cadastrar em uma plataforma de criptomoedas (ahá!).
Fazer um “investimento” de R$ 120,00 que me renderia um cashback de R$ 136,00 (olha aí os 16 reais).
Neste momento eu educadamente perguntei à “secretária” se ela precisava que eu mandasse para ela uma cópia da minha identidade.
“Para quê?”
”Só pra você confirmar que eu não nasci ontem.”
E fui excluído do grupo.
💡 MORAL DA HISTÓRIA!
Quando alguém aparecer com esse papinho aí no seu zapzap, ACEITE. Ganhe seus dez ou vinte reais. No momento em que eles esticarem seus dedinhos gananciosos para garfar a SUA grana, saia fora.
Um amigo tem sido rotineiramente abordado por essa gentinha. Toda semana está tirando vinte reais dos canalhas. Vire a palhaçada deles contra eles.
Como chave pix, não utilize seu CPF, NÉ, ANIMAL?
Nem seu e-mail principal, também. Não seja trouxa.
Já saiu matéria no jornal a respeito desse golpe, aliás.
📖 Das negligências.
Este ano li um vergonhoso total de 4 livros.
Quer dizer, sem contar os de RPG. Os de RPG não contam. E não vem dizer que conta, sim, que toda leitura é válida, etc. e tal, porque não é. Isso é autoindulgência. Não trabalhamos!
O último que li, agora em agosto, foi indicação do meu irmão mais velho. E veio em boa hora, porque foi uma leitura fácil que me deu tração para retornar à literatura depois de seis longos meses de puro desleixo. Chama-se Matéria Escura e é uma história que lida com – grande surpresa! – o conceito de multiverso. Sim, mais uma.
Mas temos que dar ao Blake Crouch uma colher de chá, pois o livro dele é de 2016. O tema não estava onipresente, como agora, ainda era possível tratar a questão com alguma originalidade.
E nesse ponto a história não peca: foi inclusive a primeira que li que se mantém fiel ao princípio básico da ideia de multiverso (toda decisão desencadeia uma ramificação da realidade). Geralmente as divisões que vemos são derivadas de um momento do passado dos personagem, ou, no máximo, do comecinho da história. A partir daí, todas as outras decisões do protagonista parecem ser definitivas.
Blake Crouch quebra essa lógica e sua abordagem do multiverso é a representação de um inferno inescapável. Apesar disso, considero que o autor não saiu muito do campo do imediato, do concreto, do óbvio. A pesquisa sobre os aspectos científicos e suas ramificações é ótima, mas as relações humanas têm a profundidade de um pires e as questões mais complexas são rapidamente descartadas em prol da agilidade da narrativa.
É um livro que não te faz pensar nada de muito novo e não te exige um momento de contemplação sobre o assunto. O entretenimento é o que importa. É um entretenimento "inteligente", claro, se considerarmos que ele te "ensina" algumas coisas novas. Mas de que adianta a apresentação de informações que não traz alguma outra camada?
Sei lá. Posso estar sendo exigente. Mas pra mim esse é o problema da literatura barata: fica apenas no campo do imediato. X acontece, personagem sente Y e reage com Z, isso desencadeia A, outro personagem sente B e reage com C, e o ciclo recomeça. Tudo está sempre na página um.
Apesar disso, recomendo a leitura. Pelo menos não vai te tomar muito tempo.
Ou você pode esperar a série, já confirmada, a ser lançada pela AppleTV em algum momento no futuro próximo. Tem pressa não. Vai no seu tempo!
🎯 Reiterando!
Outro dia divulguei nas notas, mas vou divulgar aqui também, porque gostei demais desse texto: leiam a edição Eram as orcas camaradas?, da newsletter da Gabriela Ventura.
As considerações que ela coloca na mesa – apresentando uma bibliografia respeitável sobre o assunto – me deixaram pensando sobre o tema nas últimas semanas. Um trecho em particular tem me voltado à cabeça com regularidade:
Se cindimos a ideia de que pessoa e humano são sinônimos, humano passa a ser somente um termo biológico, enquanto uma pessoa é um termo moral.
O que esse texto me causou foi uma espécie de estranhamento com relação à humanidade que acho que sempre esteve aqui, mas que de repente se manifestou com clareza. Sempre tive um problema com a estupidez das pessoas e acho que minha sensação quanto a isso cada vez se torna mais discernível: não somos, ao contrário do que nós pensamos, uma espécie inteligente.
Nós não somos uma espécie inteligente porque a inteligência pressupõe determinadas conclusões que, como espécie, ainda não fomos capazes de atingir.
Somos uma espécie colaborativa, capaz de produzir coisas assombrosas, magníficas, porque desenvolvemos e produzimos a partir daquilo que é proposto ou criado por indivíduos inteligentes (estes existem). E, dentro dessa miríade de indivíduos colaborativos, muitos deles verdadeiramente inteligentes, somos capazes de construir mensagens, arcabouços linguísticos, manifestações de inteligência.
Mas enquanto essas manifestações não forem tomadas como verdadeiras, como norteadores, pela espécie como um todo, a ideia de espécie inteligente permanecerá utópica. Um horizonte a ser atingido.
Leia lá o texto da Gabriela e me diga se não te causa sensação semelhante. É meia horinha do seu dia.
Use pra procrastinar. Olha aí: procrastinação produtiva, parte 2.
🤳🏻 Quem influencia os influenciadores?
Minha atual implicância (é bom variar, reclamar de múltiplas coisas, dessa forma você evita se tornar excessivamente enfadonho) é com a turminha que tenta a todo custo ser “influencer”.
É uma ideia que venho elaborando na minha cabeça há alguns dias e que pode dar um texto bem extenso. Ia começar a escrever agora, mas percebi que existem alguns becos que não visitei ainda e posso me perder no raciocínio se não tentar mapear antes de trazer para cá.
Assim sendo, deixarei para escrever isso depois. AGORA escreverei a tal aventura de RPG, como mecanismo de procrastinação deste assunto que não quero abordar nesse momento.
adoro quando golpista é enganado :D