[038] Das misérias particulares
Ser infeliz é a única maneira de garantir a felicidade – sua e dos outros
Outro dia estava comentando com a cremosa que não é que eu esteja bem, eu só estou na merda em um padrão que, pra mim, é administrável.
Não me lembro de estar bem, sinceramente. Não por longos períodos de tempo. Não a ponto de olhar e pensar “durante tal época da minha vida eu estava bem”.
A ideia do suicídio me acompanha desde uns 13 anos, mais ou menos, e é um pensamento intrusivo recorrente – para usar um termo em voga – com o qual lido com tranquilidade. É uma voz à qual estou acostumado. E se ela fala no mesmo tom de sempre, com a sensualidade e os gracejos de um Mefistófeles tentando vender seu peixe, dou risada e ignoro.
Às vezes ela grita, daí nossa relação é mais difícil. Mas também já tenho meu arsenal para operar em tais momentos. Além disso, levo em consideração aquele trecho da doutrina católica que diz que colocar-se em uma situação que favoreça o pecado já é pecar. E evito circunstâncias que poderiam facilitar um impulso.
Não nego, entretanto, a existência do desejo. E não vejo razão pra negar. Para mim, maluquice é viver nesse moedor de carne dizendo que acha tudo muito do caralho. Vá ser masoquista na puta que pariu, meu irmãozinho!
Também não falo disso como se fosse uma enorme tragédia, com tristeza, com pesar, com sofrimento. Oh, oh, quero morrer, oh. Nah.
Nessa, vou mais com o Álvaro de Campos:
O que há em mim é sobretudo cansaço —
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas —
Essas e o que falta nelas eternamente —;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço...
Sei que a coisa, exposta assim, toma ares de lamentação. Mas não é. Mesmo.
Isso deriva muito mais da nossa ideia da morte e do suicídio, como se a interrupção de uma existência – especialmente da própria existência! – fosse sempre uma tragédia. Mas quero que você leia esse texto com voz serena. Tranquila. Como quem fala de uma receita de bolo. Ok? Ok.
Mas por que caralhos comecei falando disso?
Porque me lembro de me sentir bem em alguns momentos.
Em uma época, por exemplo, em que criei o hábito de acordar às cinco e meia da manhã e ir até o Parque Ibirapuera pra (tentar) correr. Chegava em casa às sete horas, pilhado de endorfinas. Animado. Enérgico. Ativo.
Uma sensação infernal de bem-estar. De gostar de existir. De estar confortável dentro do próprio corpo.
Me lembrar dessa sensação me faz entender por que as pessoas fazem as coisas que fazem.
Veja: eu estou acostumado a não gostar muito de quem sou. De me sentir deslocado. Esquisito. Repulsivo. Aceitei essa como minha realidade. Fiz as pazes com isso. Não me entristece, não pesa. É o que é. Mantém minhas expectativas sobre quem sou e o que posso ou não fazer dentro de um horizonte gerenciável.
Parece horrível, mas não é: seu ego vai pra segundo plano. Ele não espera afagos e, dessa forma, é muito mais fácil lidar com os outros macaquinhos, pois sua autoestima não depende dos outros. O que dizem de ruim a seu respeito não te afeta: você já está ciente. O que dizem de bom a seu respeito também não te afeta, e dessa forma você não pode ser derrubado de pedestais (que são transitórios, imaginários).
É a adoção de uma visão muito realista a seu respeito. A compreensão das suas potencialidades. Também passa por uma evolução na tua relação com o outro: você faz o que faz para o outro porque é necessário fazer. Uma vez feito, não tem por que esperar qualquer coisa em retorno. Se vier, bem. Se não vier, amém.
Em compensação, gente acostumada a se sentir bem consigo mesma busca isso como modo de vida: a satisfação. A experiência.
E sentir-se bem não é um estado de permanência: é uma situação. É fugaz. Em algum momento a felicidade chega, te abraça e tudo é maravilhoso – especialmente você (na sua cabeça).
Mas ela vai embora. Ela. Vai. Embora. E deixa um vazio, e você tem que lidar com quem é de fato, com o que sua vida é na verdade, com o mundo e o que ele te oferece (muito, muito pouco).
Quem toma gosto por se sentir bem, quem busca isso como um estado permanente, comete atrocidades impensáveis, contra si e os outros. Lança mão de todos os recursos possíveis em busca dessa porcaria: religião, drogas, álcool, festas, tratamentos estéticos mil, vida social, filhos, carreira acadêmica, dar trela pra coach…
É uma coisa medonha. E o tempo todo, a cada etapa, a pessoa continua, como bem disse1 o zarolho, tal e qual era antes: vazia até a medula.
A sensação de bem-estar é como a inspiração. Como os bons textos, os bons momentos. Ela vem? Vem. Mas apenas quando quer. Não adianta perseguir: é a corrida em busca do horizonte. Aceitar que a vida é uma merda, nossa espécie idem, você ibidem, sem autoflagelação, mas como um despertar de consciência, uma aceitação de si para si, é a melhor forma de ser feliz. É um paradoxo, mas é o que é: se você quer ser feliz, aceite-se infeliz.
Mais uma vez, correto estava o Bojack.
Aceite-se pequeno. Aceite-se ridículo. Aceite-se limitado. Pare de achar que você “merece” ser amado, que alguém te deve qualquer coisa (afeto, consideração, gratidão, atenção). Tudo aquilo que receber, receba como um ato de generosidade dos outros.
Pare de achar que irá realizar grandes feitos. Pare de considerar que existe qualquer coisa de grandiosa em relação a você.
Tente só não ser um pedaço de merda com perninhas e bracinhos.
Sua vida será melhor.
Você será muito melhor.
E, em alguns momentos, vai até se sentir bem consigo mesmo.
“O homem é um ser que foge para o futuro. Através de todos os seus empreendimentos ele procura não se conservar, como comumente se diz, nem crescer, mas fundar-se. E, ao fim de cada empreendimento, ele se encontra tal como era: gratuito até a medula. Daí as famosas decepções depois do esforço, depois do triunfo, depois do amor.”
Você trouxe o BoJack pra sua conversa, eu costumo levar a Diane pra minha. "Every happy ending has a day after the happy ending". E também "Sometimes life's a bitch, and you keep living".