Estou pensando naquele tropo do sustentáculo que se rompe.
Você sabe do que eu estou falando. Uma história qualquer, especialmente audiovisual: um filme, uma animação. Alguém ou alguma coisa suspensa por ou pendurada em algo: uma corda, um pedaço de pau, uma barra de ferro, o último suporte impedindo o mergulho para a perdição irremediável.
Enquanto o drama se desenrola, esse último ponto de sustentação – estejam os personagens cientes ou não – vai cedendo. Aos poucos. Esperamos o momento em que a estrutura dará a missão por encerrada e o suporte não resistirá. O objeto ou personagem será lançado no vazio. A mão salvadora surgirá? Será o fim daquele elemento na história que acompanhamos? Ficamos tensos, etc.
É nisso que estou pensando. Me parece que as relações entre as pessoas (de todos os tipos) funcionam um pouco dessa forma.
O clichê é falar dos laços que nos unem. Não vejo laços. Vejo cordas. Cabos. Teias. Polímeros. E com o tempo, graças às discussões, às diferenças, aos pontos dissonantes, às situações que pesam em excesso, ou a um lado que tem a curiosidade de testar a resistência do conjunto, as estruturas vão sendo corroídas. Uma fibra que se rompe, um pedaço que quebra. Uma viga que cede.
Quanto tempo leva até que a coisa toda desabe? Quanto tempo também até que um dos lados simplesmente chute a merda toda no vazio e foda-se?
Porque isso acontece.
As coisas poderiam ser remendadas. Daria para trabalhar de outra maneira, é claro. Nem tudo é ou tem que ser da forma que queríamos que fosse ou que consideramos melhor. As coisas podem ser outras coisas, de outros jeitos. Mas não queremos outras coisas ou outros jeitos, queremos as coisas do jeito que eram. Ou do jeito que gostaríamos que fossem. Por insustentáveis que fossem. E se caíssem no vazio, tudo bem, desde que o processo ocorresse naturalmente. Mas daí alguém muda a configuração do cenário, ainda que minimamente, ainda que em termos práticos não haja muita diferença, mas agora não serve mais.
Não queremos nem testar. Não serve mais. É outra coisa, de outro jeito. Sai daqui com essa tua merda de corda diferente.
E sacudimos a porra toda no abismo.
Não estou acusando os outros, isso não é um tu quoque. É algo que eu mesmo fiz e faço e voltarei a fazer muitas vezes no futuro. Não tenho arrependimentos em relação a essas coisas. É só um troço no qual fiquei pensando. Quais são os sinais.
Meio como na história dos quadros, em Novecentos:
Sempre me impressionei com esse negócio dos quadros. Estão lá em cima há anos, então, sem que aconteça nada, mas eu digo nada mesmo, ‘fran’, caem. Estão ali, amarrados ao prego, ninguém lhes faz nada, mas eles, a um certo ponto, ‘fran’, caem como pedras. No silêncio mais absoluto, com tudo imóvel em volta, nenhuma mosca voando e eles, ‘fran’. Não existe uma razão. Por que exatamente naquele instante? Não se sabe. ‘Fran’. O que acontece com um prego para decidir que não pode mais com ele? Tem uma alma, ele também, pobrezinho? Toma decisões? Discutiu o assunto longamente com o quadro, tinham dúvidas sobre o que fazer, falavam disso todas as noites, durante anos, então decidiram uma data, uma hora, um minuto, um instante, é aquele, ‘fran’. Ou já o sabiam desde o início, os dois, já estava tudo combinado, olha, eu largo tudo dentro de sete anos, para mim está bem, okay então, entendido, em 13 de maio, okay, lá pelas seis, digamos cinco e 45, de acordo, então boa noite, ‘noite. Sete anos depois, 13 de maio, cinco e 45: ‘fran’. Não dá para entender. É uma daquelas coisas em que é melhor nem pensar, ou se fica maluco. Quando cai um quadro. Quando você acorda, uma manhã, e não a ama mais. Quando abre o jornal e lê estourou a guerra. Quando vê um trem e pensa devo ir embora daqui. Quando você se olha no espelho e percebe que está velho.
Às vezes é tudo circunstancial e ninguém tem culpa: a coisa repousa sobre os ombros do acaso, do indefinido.
Mas às vezes trazemos uma betoneira carregada e tentamos cruzar uma pontezinha rústica de madeira velha sobre um grotão daqueles e a cagada estava escrita desde o começo. Existem acidentes e acidentes, afinal.
Daí vem essa ideia também.
Do que é acidental e do que é intencional.
O que é a realidade se impondo, o tempo passando, o desgaste inevitável, sutil, a erosão onda após onda após onda após onda, o vento arrancando grãos da rocha… e o que é um doido com uma caixa de TNT e muito pouco respeito pelo status quo.
Qual desses é você?
Eu ia falar de cinema.
Mas encontrei esse texto repousando aqui. E ele era adequado, quando comecei a escrevê-lo e pensei em publicá-lo, meses atrás.
É adequado agora também.
Comigo talvez seja adequado sempre.
Eu deixo muito pouco para as intempéries e lanço muita coisa no vazio.
Acredito – posso estar errado, mas duvido que esteja – que conheço bem meus processos. Sei por que faço as coisas. Sei por que minha relação com o mundo – e com o outro, especialmente com o outro – é como é. Sei por quê.
Porém não faço muito a respeito. É como saber por que o fogo queima: isso não equivale a dizer que você pretende apagá-lo. Sequer contê-lo. Deixa queimar. Uma hora acaba. Aí a gente recolhe o que sobrou, se sobrar alguma coisa, e segue adiante. Se não sobrar nada, ok também, pelo menos seguimos com menos carga.
Entendo meus processos porque não sou um idiota.
Permito que eles continuem sendo o que são e como são porque sou um idiota.
Traz consigo um cansaço, isso. Essa consciência dos processos. Entender suas causas e manifestações e observá-los se desenrolando dentro de você, tomando corpo, ganhando força, então entrando em ação no mundo ao seu redor. Determinando seu comportamento. Você sabe como as coisas vão terminar. É só uma questão de tempo.
O que pode ser feito de diferente?
O que há pra fazer?
E quem disse que queremos fazer algo de diferente? Queremos fazer o que sempre fizemos. Queremos as coisas do jeito que sempre foram ou do jeito que gostaríamos que fossem. Enfia no cu essa tua merda de corda diferente, etc. O estrago está feito ou por fazer, já veio ou está vindo. E você tentando remendar ou evitar? Nah.
Deixa ir pro caralho essa merda e foda-se. Mas aí… o que se ganha com isso?
Se evitamos que aconteça, depois fica a sensação de que deveria ter acontecido. Era pra acontecer. E se não aconteceu agora, acontecerá no futuro.
Se tentamos remediar resta a sensação de “eu deveria ter remediado? Não era o caso de só deixar cair e pronto? E se eu não tivesse feito nada, o que teria acontecido?”. E um retrogosto de “porra, tudo eu neste caralho?”.
Ia concluir. Deveria concluir. Mas acho que não tem conclusão. Talvez a conclusão seja “Veja The Bear e decida qual posição você prefere assumir.” ou “Veja The Bear e me diga se vale a pena.”.
Essa semana que passou eu disse algo que nunca tinha dito e não sabia nem que pensava, mas concluí que era isso que eu pensava, é isso que eu penso, e estou certo ao pensar assim (posso mudar de ideia depois de escrever a frase, mas no momento vou escrever):
“Resiliência” é uma palavra usada por gente covarde pra justificar a inação diante do que acontece, especialmente perante as injustiças.
Eu não sou resiliente. Eu não luto contra a gravidade. Se algo for cair, deixa cair. Se quebrar, quebrou. Se fizer barulho, fez. Não tente pegar, é pior.
Joga fora e bola pra frente.
Gostei demais desse trecho: "Entendo meus processos porque não sou um idiota. Permito que eles continuem sendo o que são e como são porque sou um idiota."
Acho que me identifiquei haha
Resiliência é uma palavra muito usada na Inglaterra, desde o pós-guerra inclusive. Servia e ainda serve pra descrever o povo britânico como aquele que aguenta tudo se mantendo calmo e continuando. Seja sob bombas alemãs ou nos dias de hoje.
Pessoalmente detesto. Pode ter feito sentido no passado, em tempos de guerra. Na minha opinião hoje só serve de muleta pra justificar a covardia e inação, como você mesmo disse. Tipo dizer que fez algo porque é do signo de [insere qualquer um aqui].