Escrevi isso aqui no blog em 2018. Cinco anos atrás. Fiz uma suave edição e vou republicar aqui porque preciso reiterar essa mensagem. Porque esse tipo de controle, de tentativa de monopólio, torna-se mais e mais forte com o tempo.
E as pessoas não apenas estão esquecendo que precisam se posicionar, como vêm optando cada vez mais por seu conforto e conveniência, ignorando voluntariamente as consequências nefastas que esse conformismo traz para a sociedade. A mensagem que isso passa.
Então vai. Toma.
⛓ O que nós tínhamos há coisa de duas décadas, se tanto?
Um mundo de conteúdos filtrados e escolhidos para nós. Claro, ampliados com a popularização da TV a cabo - com seu maior número de canais - e da incipiente internet e o aumento de velocidade das notícias. Ainda assim havia gente por trás de tudo aquilo que líamos, ouvíamos e assistíamos decidindo o que iríamos ler, ouvir e assistir. Os editores, os responsáveis pelas programações das rádios e das TV estavam lá, determinando o que era ou não apto a ser veiculado, comercializado, passado adiante.
E nós aqui, sujeitos a esses filtros.
Daí, em meados da primeira década deste século, popularizou-se o conceito da "Web 2.0". Uma internet de conteúdo mais facilmente produzido, veiculado e acessado. E não por grandes organizações, corporações, oligopólios da mídia tradicional, mas pelo cidadão comum. Eu e você. Escrevendo, fotografando, produzindo vídeos, podcasts, e, por meio de plataformas que surgiam às dúzias, compartilhando os produtos de nossa capacidade criativa com o mundo. E assim todos poderiam organizar os próprios feeds, certo? Eu consumiria o que queria consumir: nem mais, nem menos. Os canais de vídeo pelos quais optasse, os filmes que quisesse ver, os blogs e páginas que assinasse, os sites de fotografia que decidisse seguir, os portais de notícias que considerasse mais justos e/ou alinhados à minha visão de mundo e os podcasts e artistas que resolvesse escutar. Eu seria o senhor das minhas referências e, a partir daí, poderia limitar ou ampliar meu leque de influências conforme minha vontade.
Essa era a ideia.
☁ Junto (ou graças) a essa ideia, a pirataria grassava.
Baixávamos tudo. Filmes, séries, músicas, documentários, livros, quadrinhos, jogos… E apenas o que queríamos. Não havia mais barreira econômica, impeditivo financeiro ou a ditadura do organizador oculto que decidia ao que teríamos acesso e ao que não. Os jogos hentai produzidos no oriente não são vendidos no ocidente? Um americano que fala japonês cria uma Wikia com as informações básicas sobre o jogo. Um japonês sobe o executável da instalação num torrent, junto ao crack criado por um russo. Um neozelandês quebra o código-fonte e traduz os menus para o inglês. Um chileno escreve um passo-a-passo para você desbloquear todas as funcionalidades e não se perder na história do jogo. E você, brasileiro, pode alimentar seu fetiche maluco e bater sua punheta – não estamos julgando.
Esse modelo de negócios não casa com o que prega o capitalismo. E, em um nível micro, é compreensível: por trás de cada vídeo, cada filme, cada série, cada CD, cada música, cada podcast, cada fotografia, cada texto, há investimentos. Alguém que consumiu livros, que comprou equipamentos – lentes, câmeras, microfones, computadores, placas de vídeo, de rede –, softwares de edição, etc. O aprendizado online foi se tornando mais e mais possível, mas as ferramentas – físicas ou lógicas – ainda tinham seu preço, seu custo. Essas pessoas precisavam de dinheiro para continuar produzindo seu conteúdo e também para comer, ter onde dormir, usar roupas. Nem tudo, afinal, era pirateável.
Já do ponto de vista macro existiam corporações, estúdios de cinema, grandes produtoras de jogos, editoras, a indústria fonográfica, todas elas e seus executivos e stakeholders duplamente ameaçados: primeiro porque o acesso do pequeno produtor (individual ou não) a seu público potencial já não dependia mais do dinheiro e dos canais de acesso monopolizados por esses caras, assim os talentos da indústria podiam perfeitamente criar e manter público e prescindir da máquina de controle criada por esses sujeitos. Segundo porque, ao fim e ao cabo, eles não eram mais "donos" de nada: bastava um usuário minimamente safo com um computador ligado à internet e pronto, tome distribuição gratuita de "propriedade intelectual".
💰 Então as corporações começaram a brigar de volta!
Os executivos entenderam, em certo ponto, que a estratégia estava errada.
Estavam tentando cobrir o sol com a peneira, caçar todos os ratos de uma vez, acabar com os vazamentos. Esse não era o meio de vencer a briga. A briga só poderia ser vencida se o capitalismo fizesse o que o capitalismo faz melhor: pegasse essa contracultura da universalização do acesso e transformasse em um produto, oferecendo comodidade às pessoas, ao mesmo tempo em que combatesse os grandes canais de distribuição gratuita (os sites de torrent e as plataformas de p2p).
Assim chegamos ao atual modelo de streaming.
Agora ainda podemos decidir ao que assistir (Netflix, Amazon Prime, Disney/Star+, HBO Plus, Paramount, AppleTV, a lista é longa…), o que ouvir (Spotify, Deezer), o que ler (Kindle Unlimited), o que jogar (Steam, Epic), mas voltamos àquela velha limitação: há alguém que seleciona o que vai e o que não vai para os catálogos desses serviços. O que eles podem e o que eles não podem disponibilizar para você. Mas ei, calma lá. Ainda existe o YouTube, ainda existe o Facebook, o Instagram, o Twitter. São timelines cheias de conteúdo que você opta por ver ou não ver, certo?
Certo?
Errado.
🖥 Agora o algoritmo decide o que você vai ou não vai consumir!
Certos posts sequer aparecem pra você, não importa se foram publicados por aquela conta que te interessa mais do que todas as outras. Você até escolhe quem vai seguir, mas isso não garante que receberá tudo o que for publicado. Quanto ao Instagram, então, nem se fala: a organização das fotos na timeline é aparentemente randômica, o acesso é sistematicamente podado pelo sistema de modo a forçar os usuários do serviço a optar pelos "posts patrocinados", ou seja, pagar para que posts sejam exibidos para uma porrada de gente, que segue e que não segue a conta responsável.
Então sua timeline hoje é assim: em parte formada por aquilo que você optou por ver e que o algoritmo até permite que você veja (cada vez menos); em parte formada por aquilo que ele vai te mostrar porque foi pago para isso, mesmo que você não tenha o menor interesse no assunto (cada vez mais).
Resumindo: ele te mostra parte do que você quer ver e muito do que você não tem interesse em ver.
🎞 E quanto às plataformas de streaming?
Sim, você pode ver os filmes da Netflix/Prime e ouvir as músicas no Spotify.
Enquanto estiverem lá!
Os filmes e as músicas podem (e são) retirados do ar de tempos em tempos. Apenas recentemente, ao usar o Spotify na minha TV, pude constatar a quantidade de músicas das minhas playlists que foram removidas do sistema (e agora estão indisponíveis para mim). Ou seja, podemos optar, pero no mucho. Temos escolha dentro dos limites (ideológico, financeiro, etc.) da empresa que nos oferece o material. É uma empresa, afinal.
É uma empresa!
Não são pessoas, não buscam a universalização do acesso, a distribuição por princípio, nada disso. É tudo uma questão de lucro e é assim que as decisões são tomadas: como dá para fazer dinheiro?
Conseguiram fazer com que retroagíssemos para esse cenário de possibilidades limitadas, predeterminadas por terceiros, de uma forma ainda mais grave: nos dão a ilusão da escolha. Mesmo vindo daquilo que optamos por ver, mostram apenas o que decidem que nos interessa. E, do que postamos, ocultam (às vezes até mesmo excluem) alguma coisa sem nos consultar ou avisar. Definem as normas, depois alteram as normas. E não podemos recorrer ou questionar, pois não existem canais para essas coisas.
É absurdo sugerir que voltemos aos blogs, aos downloads de filmes, séries e mp3, ao fotolog, às timelines organizadas exclusivamente de forma cronológica e, ainda que sigamos milhares de pessoas e a linha do tempo seja uma zona, uma cacofonia de dezenas de milhares de posts por hora, que seja: seria a nossa zona, a zona que escolhemos, a zona que queremos, e nada além dela. Nosso caos particular.
Mas esse cenário não voltará. Eu voltei a ouvir música apenas com as minhas mp3, e sou motivo de riso. Outro dia vi um filme em um DVD, para assombro da minha namorada.
A cultura está estabelecida. Engana-se quem pensa que essas plataformas “democratizam” o acesso à cultura: o dinheiro define quem será e quem não será visto. Quem irá lucrar e quem será explorado.
Além disso, esses locais tornam-se pontos de referência para consumo daquelas mídias. O que não está online, ou é distribuído por outros meios, não existe. Que as pessoas “tenham” as coisas, fisicamente (ou digitalmente hospedadas em seus dispositivos), não é lucrativo. Não nos mantém manipuláveis.
E nós não vamos abrir mão das nossas redes sociais em protesto, não vamos mexer no bolso das empresas que insistem em nos tratar como crianças, como autômatos, como escravos.
Imagina só se faríamos isso? E abdicar do luxo de cagar assistindo reels?
Que espécie de barbarismo seria esse? Oras.