Deixa eu falar um negócio aqui que tem fermentado na minha cabeça depois de uma conversa breve com uma amiga a respeito da newsletter anterior:
Não existe isso de “eu não sei escrever”.
…
Digo, até existe. Mas aí significa que você é analfabeto. Se você, por “não sei escrever”, quer dizer “não sou bom em concatenar ideias e formar um texto coeso e coerente” (e normalmente é isso que as pessoas querem dizer, e eu entendo a economia, mas vou explicar depois por que dessa, em particular, não gosto), então não é escrever que você não sabe.
Você não sabe pensar.
Pensar não é um troço inato.
Você até pode ter uma – ou mais (procure ajuda!) – voz na sua cabeça que passe o dia todo te dizendo coisas, matutando a respeito do que você fez ou precisa fazer, remoendo situações, recriando diálogos, te fazendo rir subitamente… isso é normal (mais ou menos, seu esquisito). Isso não é pensar. Do mesmo jeito que espadanar numa piscina não é nadar.
Pensar é outra coisa.
Pensar corretamente requer a estruturação de todo esse processo em algo coerente, direcionado, com objetivo e sentido. Exige atenção constante, método, controle. Consciência. Autoconsciência.
A capacidade de se colocar em xeque.
Essa é a primeira coisa que você tem que fazer pra aprender a pensar com competência: não acreditar em quase nada daquilo que pensa, a menos que organize os tais pensamentos e daí releia, preferencialmente depois de algum tempo.
E como é que a gente organiza os nossos pensamentos? Existem alguns métodos. Fazendo terapia, por exemplo.
Ou escrevendo.
A escrita cristaliza uma coisa amorfa que acontece dentro da sua cabeça em um encadeamento (mais ou menos, às vezes muito menos, às vezes nada) lógico. Se você, seja em seguida, seja um tempo depois, revisita essa manifestação dos teus processos e conclui que falou muita merda…
…parabéns.
Você é um falador de merda!
Você está aprendendo a pensar!
E, se está aprendendo a pensar, então está aprendendo a “escrever”.
Veja bem: não entenda isso como se ficar falando “Ai, eu falo muita merda, rsrs”, de forma vaga, como quem só está mesmo pescando elogios, significasse saber pensar. Muitas vezes a pessoa só está – você veja só que coisa impressionante – pescando elogios. Quando você, sendo um pensador minimamente qualificado, olha para o fruto da sua ponderação e conclui “Que merda eu falei aqui, Satã me salve e deus me dibre!”, precisa saber explicar por que aquela foi uma elaboração de merda.
Significa que você nunca mais retornará àquele lugar? Mas nem fodendo.
Concluir que estava errado sobre estar errado é parte do processo.
Uma parte muito comum, inclusive.
E é por isso que a releitura dos teus próprios textos é sempre uma coisa vexatória, dolorida. Mexe com tua autoestima, teu amor próprio.
E quando acontece e você considera – ah, a inocência! – que é um sinal positivo, logo a voz interna diz “Porra nenhuma, tem gente que piora com o tempo, pode muito bem ser seu caso.”
A consciência tá pouco se fodendo pro setembro amarelo.
Deixa eu te dizer um troço que eu não sei fazer:
Eu não sei jogar xadrez.
Eu sei mexer as pedras? Sim. Eu sei que o cavalo se move em L, que o peão se mexe uma casa por vez (podem ser duas, em seu primeiro movimento), que o bispo vai na diagonal…
Isso é só mexer as pedras, jogar xadrez é outra coisa.
Enfim. O que eu tô dizendo com isso, desde o começo? Eu tô dizendo que você SABE escrever (ponto pra você!). Escrever é usar uma ferramenta. Você consegue usar um serrote, porra.
Você não sabe é PENSAR (burrão do caralho!*). Pensar é o método de usar uma ferramenta. Um marceneiro habilidoso vai operar o serrote com uma facilidade que te deixará envergonhado da sua inaptidão.
*Isso não significa que você é burro. Até porque o burro sempre acha que sabe fazer qualquer coisa.
A burrice pressupõe esse maravilhoso delírio de plenos saberes (invejo muito).
Seu “não saber escrever” (pensar!) pode ser uma questão de treino. De esforço. De empenho. De dedicação. De bunda na cadeira (palavras do Clóvis). E, da mesma forma que você só fica fortão na academia se se desafiar a levantar pesos maiores, só vai melhorar sua capacidade de pensamento se…
(Lá vem!)
…ler coisas difíceis.
Difíceis, bicho. Chatas. Que você termina uma frase e pensa “Não tem uma palavra que eu desconheça aqui…
…e mesmo assim não entendi porra nenhuma do que esse maldito desgraçado tentou me dizer.”
Ou que te causam mal-estar. Incômodo. Físico. Um negócio esquisito na boca do estômago. Ou na alma. Ou na bile. Onde você quiser considerar que está a coisa sem nome que é você.
Não falo de “dar gatilho”. Isso é coisa de gente fresca que não trabalha os próprios traumas e quer um mundo acolchoadinho pra não se aborrecer. Isso é um adulto cuja formação social está incompleta e eu não tenho tempo pra esse tipo de imbecil.
Falo de coisas mais difíceis. De um chamado à realidade. Da remoção de um véu que encobria uma ignorância confortável. De sentir ruindo um pilar que você considerava fundamental na construção da sua identidade. Da sensação de que, de repente, alguém te deu uma lanterna que você acendeu só pra descobrir que ela não te ilumina: o que ela te apresenta é a imensidão do quanto você não sabe.
Pensar, pensar com propriedade, passa por isso.
Por entender o quanto você não sabe.
Constatar que você é incapaz.
Que não grokka.
Que é apenas um ovo.
Enfim. Eu ia concluir com um negócio…
…daí comecei a escrever e percebi que ia falar uma merda grande. Daquelas.
E desisti da minha conclusão. Deixarei como está.
(Disso depreende-se que:
Eu não sei escrever.)